quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Excelência nos serviços


_ Ó, Don'Ana?
_ Pois não.
_ Aqui é o Wanderlley, da oficina.
_ Pois não, Wanderlley.
_ É sobre os difusô de ar que a sra. queria trocar.
_ Sei...
_ É cinqüenta e três réau cada difusô.
_ Cada?
_ Sim, sra.
_ Paciência, né? Ok, Wanderlley. Pode trocar.
_ Só que eu não tenho as peça.
_ Mas você vai encomendar, né?
_ Vou, não. A concessionária também não tem as peça.
_ Por acaso, isso significa que você não vai trocar?
_ Sim, senhora.
_ Então, por que, em nome de Deus, você me ligou mesmo?
_ Porque a sra. disse que queria o orçamento.
_ Mas o que eu vou fazer com um orçamento se você não tem as peças, criatura?
_ ...
_ Wanderlley? Você ainda está aí?
_ Tô, sim, senhora.
_ Mais alguma coisa?
_ Não, senhora.
_ Então tá, Wanderlley. Tchau.
_ Mas a sra. não quer que troca os difusô?
_ Quero, mas você não acabou de dizer que não tem?
_ Disse, sim, senhora.
_ ENTÃO COMO É QUE VOCÊ VAI TROCAR OS DIFUSORES, WANDERLLEY?
_ Eu não sei, não senhora.
_ Tem outra concessionária pra onde você possa ligar?
_ Não, senhora.
_ Tem algum desmanche na Ricardo Jaffet pra onde você possa ligar?
_ Não, senhora. Deus me livre.
_ Então eu acho que estamos conversados, não é, Wanderlley?
_ ...
_ NÃO É, WANDERLLEY?
_ Mas se chegar os difusô, a sra. quer que troca?
_ Se chegar, eu quero. Mas você me disse que não vão chegar, não disse?
_ Disse.
_ Então não troca.
_ Mas a sra acabou de dizer que queria trocar e...
_ Tchau, Wanderlley.

Antes do telefone ser colocado no gancho, ainda ouço ele comentar com o Cydney, irmão dele, que devia estar por perto:
_ Essas mulé é tudo louca.

O sortudo

Ele era assim, meio sem sorte.

Não que tivesse o hábito de jogar, mas nunca tinha ganho na loteria (nem na federal, nem na esportiva), nem em rifas, nem em sorteios, nem em bingo. Até no consórcio, que tinha entrado anos antes - daqueles, pra pagar em 36 meses - conseguiu ser o penúltimo contemplado.

Ainda bem que na vida, tudo muda. Naquele ano, a dele também mudou. Estava acabando de pagar a décima e última prestação do pacote de fim de ano para Peruíbe, quando soube que havia sido sorteado. Para o plantão de fim de ano da empresa.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Quem poderá nos ajudar?


"Querido Papai Noel,

Eu quero que você me dê uma roupa de explorador com binóculo e walkie-talkie e uma pistola de mentirinha que atira e sai foguinho e para desapertar o foguinho solta o botão. Ah, e uma M-16 que não faz nada, só atira e solta que nem a pistola e também uma roupa de Peter Pan e uma de Sininho pra minha irmã. Ela é maior que eu e eu sei que a Sininho é menor que o Peter Pan, mas não faz mal. Ela também não voa e a Sininho voa, mas eu quero a fantasia assim mesmo.

Um beijo Papai Noel, leia essa cartinha e traga os presentes que eu pedi. Ah, por favor.

Ah, e um fone de ouvido e um chicote magnético. E no dia das Crianças você não trouxe meu pára-quedas, hein? Vê lá!

Até o Natal,
Montanha, 5 anos

É claro que quem escreveu a carta foi minha irmã, né? Eu fui dizendo e ela foi escrevendo porque eu não sei escrever, mas eu já tô aprendendo porque ano que vem eu sou do pré. Meu nome eu já sei e também o de alguns amigos da classe. O do Lorenzo eu não sei, porque eu sempre troco o lado do zê e o do Jean Edouard eu também não consigo porque é comprido demais e escreve de um jeito engraçado. Eu preferia pedir os presentes pelo game que a gente aponta o bonequinho pros enfeites e ganha pontos e aí no Natal ganha os presentes, mas a mamãe falou que não ia dar certo. Eu aposto que ia."

Ah, continua sendo o Montanha, viu?, 5 anos."

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Ho Ho Ho!

Vésperas de Natal, shopping impraticavelmente lotado e num canto, suando em bicas, um homem vestido de Papai Noel. Apesar dos tempos e do bom senso, há uma fila de crianças devidamente acompanhadas dos pais para sentar no colo do sujeito e fazer o pedido de Natal.

Cena 1:

_ Qual é o seu nome, menininha?
_ Amanda.
_ Muito bem, muito bem. E você foi uma boa menina o ano todo?
_ Fui, sim.
_ Estudou direitinho?
_ Estudei.
_ Obedeceu ao papai e à mamãe?
_ Obedeci à mamãe. Ao papai, eu não obedeci porque ele foi embora de casa e a mamãe falou que ele é um canalha infeliz e que não é pra eu obedecer ele nunca. Nunca!

Cena 2:

_ Ei, menininho, o que você quer ganhar?
_ Um skate.
_ E você?
_ Uma bola
_ E você?
_ Uma bonequinha que fala.
_ E você?
_ Um caminhão grandão.
_ E você?
_ Um patinete, um walkie-talkie, uma pista de HotWheels, um pára-quedas, um chicote magnético e todos os modelos de carrinho que eu ainda não tenho.
_ Puxa... a mamãe vai ter que trabalhar muito, hein?
_ Por quê?
_ Pra comprar esses presentes todos.
_ Ué, mas não é você que compra?
_ Er... eu... bem, sou! Mas é que eu tenho muitas crianças para dar presentes. Não posso comprar tudo isso para uma criança só. A mamãe vai ter que me ajudar.
_ Mas a mamãe já trabalha muito.
_ E será que ela ganhou dinheiro suficiente?
_ Não sei. Ela também está na fila, ó: é aquela ali. E disse que vai pedir exatamente isso pra você.


Cena 3:

_ Oi, menininho. Qual é o seu nome?
_ Luisinho.
_ E você foi bonzinho o ano todo?
_ Hum-rrrum.
_ Tirou boas notas?
_ Não porque eu ainda sou criança e não faço prova.
_ Mas você passou de ano?
_ Claro, né? Ninguém repete na minha idade.
_ E o que você quer que o Papai Noel traga?
_ Um X-Box.
_ Tá certo, tá certo. Eu vou trazer, tá bom?
_ No ano passado, você disse a mesma coisa e não trouxe.
_ É que no ano passado não deu. Quer uma balinha?
_ A mesma conversa de sempre. Ó: se for pra trazer um caminhão ridículo e um pijama do Homem-Aranha como você trouxe no ano passado, nem perca tempo, tá? Porque eu NÃO VOU gostar.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Natal multiplataforma


_ Mamãe? Posso levar esse Papai Noel pequenininho para a escola?
_ Esse que veio na caixa de panetone? Pode sim, filho.

No carro:
_ Tzóin, psst, psst, psst! Tzóin, pssst!
_ Que é isso, filho?
_ É o Papai Noelzinho, mamãe. Tzóóóóin, pssst!
_ Mas que barulho é esse?
_ É que cada vez que ele vê um enfeite de Natal na rua, eu aponto ele pro enfeite e ele ganha 200 pontos. Enfeite de luzinha vale 500 pontos. Depois, eu entro no site do Pólo Norte, digito minha senha e eles vêem quantos pontos meu Papai Noel tem. Aí, eu ganho meus presentes, entendeu?
_ Mas e a cartinha?
_ Que cartinha?
_ Você não vai escrever uma cartinha pro Papai Noel, mandar pro Pólo Norte...?
_ Eu não!
_ E por que não?
_ Porque isso é muuuuuuuuuuuito antigo. Imagina se o Papai Noel vai ter tempo de ler as cartas de toooodas as crianças do mundo?! Assim, a gente vai acumulando pontos e quando chegar o Natal, ele só precisa puxar os resultados do game. Entendeu?

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Meu homem é assim.

Ontem, fui comprar flores para a minha mulher.

Eu deveria fazer mais vezes, pois adoro. Em datas específicas e, especialmente, fora destas.
Uso costumeiramente uma floricultura perto. Não entendo muito do assunto, mas sei o que é bonito aos meus olhos e mais do que tudo, ao meu sentimento.

_ Oi, boa noite. Hoje, eu gostaria de levar algo mais simples, mas especial, como sempre.
_ Pois não, senhor O que acha desse arranjo?
_ Ok, tá lindo. Acho que você já conhece o meu gosto.

Enquanto ela arrumava o arranjo, pensei: "caramba, passo sempre aqui, sempre escrevo um cartão, mas nunca mando entregar." Na dúvida, sapequei, do nada:

_ Senhora, as flores que sempre compro são sempre para a mesma mulher. A minha, única.

Oriental que é, a dona da floricultura limitou-se a me escutar, sem mover um só músculo do rosto.

Depois que paguei, pedi novamente um cartão da floricultura com o nome dela, para poder encomendar quando estiver longe, .

Na dúvida, perguntei:

_ Como vamos escolher as flores quando eu não puder vir pessoalmente?
_ Eu conheço o seu gosto, senhor.
_ Mas quando eu ligar, como você vai saber que sou eu?

Dessa vez, ela me olhou e disse, com firmeza:

_ É só dizer que é o homem da mesma mulher.

Não fosse eu homem de uma só mulher e não fosse ela dona de floricultura, mereceria uma flor.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Psicologia automobilística

Depois ainda tem gente que tem coragem de dizer que carro não tem sentimentos. Eu mesma comecei a conversar com o meu de uns tempos pra cá. Ué, qual é o problema? Não há quem converse com plantas? É que ele anda sensível, principalmente com a aproximação do fim do ano. Quem é leitor antigo, sabe que uns dois anos atrás, eu vivi uma verdadeira epopéia automobilística, a ponto de passar dias com meu carro desaparecido no mês de dezembro e de vivenciar o caos de estar, em pleno dia 23, antevéspera do Natal, subitamente sem ré. Mas quem precisa de ré, não é mesmo? Todo mundo diz que é pra frente que se anda...

Enfim, o carro – sim, é o mesmo carro. O mesmo bólido prateado que quase me levou à falência e à loucura há algum tempo – tem demonstrado já há algum tempo, persistentes sinais de carência. Para tentar contornar o problema, já gastei com ele em oficina mais do que certamente gastarei com todos os meus presentes de Natal juntos. É até bom, porque nessa época do ano (com mudança, décimo terceiro da babá, presentes, festas, ceias, amigos secretos aos montes), sempre sobra uma grana que a gente não sabe em que gastar. É um alívio poder dar um destino nobre a um dinheiro que está lá, paradão, sobrando na conta... Só que não adiantou.

Nos últimos trinta dias, passei cerca de dez sem carro. Felizmente, tenho uma alma caridosa na família que não tem usado seu próprio veículo e me cedeu, para uso temporário, sem qualquer custo.

Quando finalmente consegui recuperar meu bólido, após dias de empenho, negociações e ameaças entre o Sr. Ana Téjo e o mecânico, andei alguns dias com ele, até ficar três vezes na rua. No mesmo dia.

Ontem, depois de uma crise mais do que justificável de choro convulsivo, liguei para meu corretor de seguros, que me aconselhou a pedir o carro-reserva da seguradora.

_ Alô, seguradora.
_ Alô, don’Ana.
_ Olha, eu queria saber o procedimento para solicitar o carro-reserva.
_ Pois não. O que aconteceu?

Contei resumidamente e disse que teria que deixar o carro no mecânico – de novo – a partir da primeira hora da segunda-feira. A seguradora boazinha me dá direito a carro-reserva depois de 24 horas que o meu carro estiver na oficina. Ou seja, inevitável ficar um dia a pé, mas é melhor do que nada.

_ Onde a sra. está nesse momento?
_ Estou na casa do sr. Ana Téjo, que fica estrategicamente localizada exatamente na frente da oficina.
_ E a sra. quer estar solicitando o guincho?
_ Eu não vejo necessidade. Primeiro, porque hoje é domingo e a oficina está fechada. Segundo, porque o carro está em segurança, na garagem. Terceiro, porque eu mesma posso levar o carro à oficina amanhã, pela manhã.
_ Mas se a sra. não estiver pedindo o guincho, nós não temos como estar concedendo o carro-reserva.
_ Fofa, entenda uma coisa: não faz o menor sentido vocês mandarem um guincho pra cá, para atravessar a rua com o meu carro.
_ Mas o carro está andando?
_ Está, mas está em risco. Meu mecânico me orientou expressamente a não andar com ele, mas isso não significa que eu não possa sair da garagem e cruzar a rua e parar na oficina, entendeu?
_ Nesse caso, a sra. não tem direito ao carro-reserva.
_ Comassim, pelamor?
_ Porque o carro-reserva só é concedido se o carro chegar guinchado à oficina.
_ Sei. Deixa eu entender uma coisa: se eu mesma levar o carro à oficina amanhã cedo e economizar o guincho para VOCÊS, não tenho direito ao carro-reserva. Se eu mandar chamar o guincho e o guincho atravessar a rua com o carro, eu tenho direito, é isso?

A gentil atendente me pediu o endereço onde eu estava e o da oficina. Dei. Depois de alguns minutos de consulta ao Guia de Ruas, ao GPS e de muito raciocínio matemático, ela disse:

_ Mas, sra.! A sra. está a apenas sete números de distância da oficina. É praticamente na frente.
_ Eu sei, criatura! Foi a primeira coisa que eu disse. Estou vendo a oficina daqui, da janela. Se não estivesse fechada PORQUE HOJE É DOMINGO, eu poderia até dar tchauzinho pro mecânico, que já virou meu brother.
_ Mas a essa distância não faz sentido chamar o guincho!
_ É o que eu estou dizendo, lembra?
_ Então, nós não vamos estar podendo guinchar seu carro e a sra. não terá direito ao carro-reserva.
_ Sei. Deixa eu só entender outra coisa: se na segunda pela manhã, eu me afastar 3 ou 4 quadras com o carro, ligar para o guincho e vocês guincharem o carro até a oficina, aí eu tenho direito ao carro-reserva?
_ Sim, senhora.
_ Então tá. Muito obrigada. Brilhante o sistema de vocês.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

A evolução dos pesadelos

É engraçado como à medida que a gente cresce, muda também a natureza dos pesadelos. Não há adulto que sonhe com fantasmas, monstros ou mortos-vivos. Nãããão. Adultos sonham com problemas no trabalho, situações embaraçosas de exposição, conflitos emocionais não resolvidos, perdas graves, enfim, desnecessário detalhar aqui porque todo adulto sabe de que consistem seus pesadelos.

Na infância é diferente. Lembro de acordar suada, com o coração aos saltos, chamando pela minha mãe, porque tinha sonhado com uma onda gigante, de mais de quarenta metros, que formava uma parede de água acima da altura da varanda do apartamento em que ficávamos no Guarujá. Ou do meu pavor de sonhar com um funcionário do supermercado que freqüentávamos, de pele muito, muito escura e olhos muito, muito brancos, que me olhava insistente e ostensivamente. Horrível também era sonhar com a professora da terceira série, uma bruxa cruel e sem coração, que deve ter feito Pedagogia na Febem e que diariamente nos ameaçava prender na escola para que perdêssemos a carona, o ônibus ou a mãe e tivéssemos que dormir lá, até o dia seguinte. Não. Isso não era o sonho. Essa era a parte real. Nos pesadelos, ela voava numa vassoura e nos prendia em calabouços úmidos, escuros e malcheirosos. Mas meus piores pesadelos eram com os olhos do Jack Nicholson. Ele mesmo; o ator. Uma vez, passei acidentalmente pela porta do quarto da TV tarde da noite e vi uma cena de O Iluminado. Passei anos assombrada por aquele olhar.

Hoje participo – do lado de fora, felizmente – dos pesadelos dos meus filhos e tenho que fazer um esforço danado para manter a seriedade, abraçá-los com força, beijar as cabecinhas cheirosas e suadas e garantir que vai ficar tudo bem. Ao meu filho, já garanti que dedetizei a casa contra monstros – quando é preciso reforçar a dedetização, uso um borrifador de roupas com água filtrada, que é tiro e queda – mas sempre reforço que se ele parar de assistir Power Rangers, a dedetização fará muito mais efeito. A minha filha, já naquela fãs portas da adolescência, já começam a surgir os primeiros pesadelos de adulto, onde ela elabora problemas vividos na escola, conflitos com os pais, dúvidas, fragilidades e incertezas. De vez em quando, a infância fala mais alto e ela sonha com uma cena dos mortos-vivos dos Piratas do Caribe ou de outro filme particularmente impressionante.

Ainda outro dia, depois de quatro horas intensas na festa de um amiguinho de classe, meu filho voltou para casa cambaleando de sono, tomou um banho, um copo de leite e foi dormir. Lá pelas tantas, acordou berrando. Pulei da cama para atendê-lo.

_ Uma bruxa, mamãe! Uma bruxa horrível!
_ Onde, filho? Não tem bruxa aqui em casa, lembra?
_ Não foi aqui, mamãe. Tinha uma bruxa medonha na piscina de bolinhas!

Ri baixinho e o abracei com força. Como é bom quando nossos piores pesadelos são os olhos do Jack Nicholson ou a bruxa na piscina de bolinhas.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

As coisas que a gente faz para (tentar) relaxar

Dia desses estive em minha terapeuta de shiatsu para mais uma tentativa de me livrar de uma torturante dor nas costas que tenta me pôr a nocaute há tempos. Segundo minhas queridas amigas que só querem o meu bem, é coisa de velho!

Pois bem. Eli é uma japinha pequena, socada e forte como um lutador de sumô. Com ela, aprendi que tenho pontos na omoplata que refletem na testa, pontos na batata da perna que refletem na coluna, pontos na planta do pé que refletem no abdômen e, o mais incrível: um bendito ponto na nuca que toda vez que ela aperta, eu tenho certeza absoluta de que meus olhos vão pular das órbitas. Ela diz que a culpa é da minha falta de sono. Eu digo que é maldade mesmo. Antes de iniciar a sessão, já sabendo da tortura que viria a seguir, disse:

_ Agora é aquela hora em que você tenta fazer meu olho pular, né?

Ela apenas ri, suave. Eu continuo:
_ É, Eli. Porque um dia desses, você vai conseguir e aí não vai poder dizer que eu não avisei. Quero só ver a sua cara me dizendo: ups, foi maus! Ó, seu olho pulou, mas passa lá no São Luiz que eles põem de volta rapidinho! Só que aí, pra não chegar atrasada no trabalho, eu vou levar o olho na bolsa pra recolocar outra hora, o olho vai perder o prazo de validade e eu serei obrigada a viver como um ciclope, por SUA culpa.

Ela ri novamente.
_ Você TEM que dormir, Ana.
_ Que hora? Que hora eu vou dormir, hein? Aaaiiii! Tá bom. Eu durmo. Mas você promete que não tenta arrancar meu olho hoje?
_ Riririri!
_ Aaaaaaiiiiiii! Pulou?
_ O quê? O olho, ué.
_ Não. Continua no lugar.
_ Engraçado, porque a dor foi tanta, que escureceu tudo.

Passado esse momento lancinante, ela tenta deslocar minhas omoplatas. Com convicção. Eu berro de dor e ela diz que é culpa do estresse. Estresse, nada! É culpa sua, que está aplicando a força de mil mamutes nas minhas costas.

Aí vem a hora de tentar desencaixar o braço do tronco. Ela puxa e gira bem na articulação com uma força hercúlea. Dói alucinadamente.

_ Eli...
_ Sim, Ana.
_ Tá grudado! O braço tá grudado no tronco!
(Risinho.)
_ Eu sei.
_ Então, por que você está tentando desgrudar, pôxa vida?
_ A culpa é do excesso de digitação.
(Ah! É mesmo. Tá bom.)

Não contente, ela torce meu corpo para um lado como se fosse um ésse e me manda respirar fundo. Eu sempre estremeço nessa hora porque, na seqüência, ela apóia uma mão no ombro e outra na bacia e dá um tranco. O objetivo do "tranco" é fazer todas as vértebras da coluna estalarem. Primeiro de um lado e depois do outro. Às vezes dá certo.

Quando ela faz essa mesma coisa na cabeça , é inesquecível porque eu vejo o filminho da minha vida passar toda vez.

_ E aí? Eu tô viva?
(Risinho suave.)
_ Claro que está, Ana.
_ Porque dessa vez, eu vi o filminho da minha vida com uma nitidez tremenda. Juro! Pensei que tivesse empacotado. Aliás, você já perdeu algum cliente aqui na mesa?
_ Ririririri!

O resto é moleza. Ela fica em pé em cima dos meus pés, na dobra dos joelhos e depois me manda sentar e me puxa MUITO para cima. Devo crescer uns 5 cm cada vez que vou lá. O que significa que, se mantiver a constância, dentro de seis meses vou estar com uns... três metros e vinte?

Saio de lá totalmente esquecida da dor na região lombar. Até porque, todo o resto dói tanto, que fica uma coisa assim, meio difusa, meio pulverizada.

O conceito deve ser esse. Com certeza.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Vinte e nove de outubro

Aí um dia, você cruzou meu caminho. E eu nem posso dizer que não estava esperando, porque você é tudo o que eu sempre quis (e nunca tive coragem de pedir). E de conversa em conversa, de música em música, de jantar em jantar, a gente foi descobrindo que, no fundo, éramos uma pessoa só. O mesmo estilo, os mesmos gostos, os mesmos princípios, o mesmo ritmo, as mesmas manias, a mesma cicatriz no queixo (e até as mesmas alergias!).

Nossa história, fomos construindo aos poucos. É verdade que a gente devia ter se conhecido uns 15 anos antes, mas talvez não tivesse sido uma boa idéia. Porque 17 anos atrás, meu amor, eu não estava preparada para você (e nem você pra mim). E seguimos, dia a dia, passo a passo, sonho a sonho, até que, de repente, deixou de fazer sentido ficar separado. E a gente se juntou ainda mais.

Fácil? De jeito nenhum. Se fosse fácil, não teria graça. Mas o fato é que o tempo foi passando e hoje, dois anos depois, eu não consigo nem imaginar minha vida sem você. Devagar, você foi ocupando todos os espaços e criando outros, que eu nem sabia que existiam. E você está em tudo, babe: na minha casa, no meu trabalho, no meu carro, no meu quarto, nas minhas roupas, nos meus sonhos e nos meus planos.

E por que a gente chegou até aqui? Por que merece, oras. Merece cada minuto de felicidade, cada olhar cúmplice, cada noite juntos, cada toque, cada sorriso e cada lembrança. Até quando? Até sempre. Porque o que eu quero é passar o resto da minha vida com você. Até os músculos caírem, até os filhos crescerem, até os cabelos clarearem, até os anos pesarem, até a pele vincar, até a memória falhar e depois que tudo isso acontecer, por mais vinte ou trinta anos. E tudo isso só porque um dia, você cruzou meu caminho (ou fui eu quem cruzou o seu?) de vez.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Onde está o Montanha?

Quando a gente muda de casa, há essencialmente duas formas de fazê-lo:

1-
Levar as coisas aos poucos e arrumá-las no novo local para, no fim, levar apenas os móveis;
2-
Levar tudo de uma vez, com uma transportadora.

Como tudo na vida, as duas formas têm vantagens e desvantagens. O bom de arrumar tudo aos poucos é que quando os móveis finalmente chegam, as coisas já estão quase que totalmente organizadas, o que facilita bastante a entrada no novo endereço. A desvantagem é que dá uma trabalheira dos infernos e leva tempo. A vantagem de contratar uma transportadora é que o sofrimento é breve. Em um dia os caras empacotam tudo e no dia seguinte, carregam. É a opção ideal para quem tem pouco tempo para mudar. A desvantagem é que dá uma trabalheira dos infernos.

Minha opção, por falta de opção, foi a segunda. E quando os moços da transportadora terminaram o serviço, por volta das cinco e meia da tarde, fizeram a contabilidade das caixas ainda não abertas para eu fazer o cheque caução. Restavam CEM caixas.

Hoje, três dias depois, já consegui, com o auxílio da equipe mais obstinada e disposta do mundo, abrir boa parte delas. Já achei até a minha filha e acho que até segunda-feira acho o Montanha. Ainda bem que quando o empacotaram, eu coloquei um pacote de biscoitos na caixa dele. Estou tranqüila porque pedi pra enrolarem ele bem direitinho no plástico-bolha, colocarem um adesivo de “este lado para cima” e fazerem uns furinhos na tampa da caixa.

No fundo, no fundo, ele está melhor que a gente, que tá aqui, do lado de fora, no meio do caos. Pelo menos pode ficar lá, quietinho. Conversando com uma amiga, ela me perguntou se eu tinha colocado o DVD dos Backyardigans junto com ele. Não, né? Pra ele assistir como?

_ E uns carrinhos, Ana? Ele deve estar morrendo de tédio a essa altura...
_ Que nada! Ele adora biscoito. Eu pus aqueles recheados, sabe? Ele vai perder um tempão descolando todos e raspando o recheio com os dentes.
_ Mas tá frio, Ana...
_ Não tem problema. Eu pedi pra enrolar ele bem direitinho no plástico-bolha. Ele vai ficar aquecido.
_ Mas você não pôs nem uns carrinhos na caixa?
_ Sabe qual é o problema, querida? É que com a abertura das caixas, eu descobri que os moços da mudança arrumam tudo por ordem alfabética de objeto, sabe?
_ Comassim?
_ Abajur, almofadas, alpiste, amaciante, arroz...
_ Meu Deus, Ana! Que caos! É por isso que ele e a irmã não estavam na mesma caixa.
_ Exatamente. Entende as minhas olheiras agora?
_ Mas... e o Montanha?
_ Ah, deve estar junto com a maionese, a mesa da cozinha e o Methiolate.
_ E em que letra você está?
_ Estou entre o F e o H, mas prometo que quando encontrá-lo, eu te conto, tá?

Mudanças

Não tem jeito. Mais cedo ou mais tarde, uma hora ou outra, todo mundo muda. Uns mudam devagar, por etapas; outros mudam de repente e tem gente que nunca chega a se fixar de verdade. Minha vida foi assim por algum tempo. Tanto, que aos 28 anos, tinha acumulado dezesseis mudanças no currículo. Felizmente, de algumas eu nem lembro, mas lembro perfeitamente que em determinada fase da vida, não cheguei a passar nem seis meses num lugar. O fato é que, de repente, tudo se estabilizou e eu passei dez anos inteirinhos em um mesmo lugar. Até essa semana. Essa semana, mais precisamente segunda-feira, foram uns moços fortes lá em casa e empacotaram absolutamente tudo o que acumulei até hoje em questão de horas. Se por um lado fiquei impressionada com a eficiência, por outro me fez pensar na impermanência da coisa.

De repente, tudo o que eu juntei, comprei, colecionei, dobrei, trabalhei, escrevi, vesti, recortei e organizei foi parar em um punhado de caixas pardas, todas iguais, firmemente fechadas com fita adesiva grossa. Para diferenciá-las, só umas letras apressadas com informações vagas como “quarto menina” ou “cozinha”.

Olhei as paredes nuas e o chão vazio e tentei, com toda força, lembrar do que a minha irmã havia dito: “parede não tem memória, Ana. Coisa boa, a gente guarda aqui, ó. No coração.” Ela tem toda razão, mas e pra pôr em prática? Fiquei ali, lembrando da minha filha pequena, do primeiro dia na escola, da primeira festa junina, da primeira amiguinha; dos aniversários, da minha festa de trinta anos; lembrei de quando fiquei grávida do meu filho, de quando chegamos da maternidade; do tempo que minha mãe passou conosco, da minha separação, de mudar todos os móveis de lugar e de refazer a vida ali, com as crianças. É verdade que paredes não guardam lembranças, mas aquelas testemunharam um bom pedaço da minha vida. Impossível ficar indiferente, pelo menos para mim. Só que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo muda e eu também mudei. Ou estou mudando. Nos dois sentidos.

Impulso feminino

Estou aqui, arrumando o ninho e já volto.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Outra chance


_ E então, filho? Mais uma chance de dizer o que quer no Dia das Crianças.
_ Hmmm... já sei!
_ Ah, que ótimo. E o que é?
_ Um pára-quedas.
_ Não pode ser, filho.
_ E por que não?
_ Porque não há pára-quedas à venda.
_ Dããããns. E as pessoas que usam, compram onde?
_ Filho, entenda, pára-quedas não é uma coisa que a gente possa comprar por aí.
_ Por que não?
_ Porque é perigoso.
_ Mas eu prometo que pulo baixinho.
_ Pior ainda. E tem mais: você só vai poder pular de pára-quedas quando tiver juízo ou quando eu morrer, o que acontecer primeiro. Não tem mais nada que você queira? Alguma coisa mais apropriada para a sua idade?
_ Hmmm.... tem!
_ E o que é?
_ Um lança-chamas.
_ Filho, eu não vou te dar um lança-chamas.
_ E por que não?
_ Primeiro, porque é uma arma horrível e violenta. Depois, porque também não tem lança-chamas pra vender por aí.
_ Mas eu ia usar pra te defender, mamãe.
_ Tá bom, filho. Sua intenção é muito nobre, mas eu acho que dá pra você me defender com recursos menos radicais. Alguma outra coisa?
_ ....
_ Pôxa, filho. Não é possível que não tenha mais nada.
_ Tem uma coisa.
_ E o que é?
_ Um extintor de incêncio. Mas pra fogo elétrico, tá?

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Infestação

Falar do clima é uma coisa muito chata. Tem chavão maior do que entrar no elevador, dar um “bom dia” amarelo e, sabe-se Deus porquê, emendar um “calor, né?” Francamente! Vamos combinar que se você vive na mesma cidade que a criatura que está ao seu lado, não há outra resposta possível além de “é”. Preciso confessar que no meu bom humor matinal infinito, muitas vezes tenho vontade de responder com “calor? Não tô achando. Aliás, tô até achando fresquinho. Deve ser porque cortaram sua eletricidade por falta de pagamento e você ficou sem ventilador, não?”, mas nunca cheguei a tanto. Ainda.

Só que São Paulo está impossível: esquenta, esfria, esquenta, esfria, esfria, esfria, ferve, esfria pra caramba, tudo no mesmo dia. Não há quem agüente (talvez haja, mas não é meu caso). Hoje, por exemplo, as mesmas pessoas que estavam de casaquinho pela manhã, bufavam seminuas na hora do almoço.

Na última noite de calor dos infernos – que foi ontem, se não me engano – houve uma infestação daqueles malditos insetos voadores sem noção, que entram pela janela quando anoitece e ficam rodopiando em torno das lâmpadas. Não contentes, eles descem começam a tentar penetrar nos orifícios mais improváveis de gente séria e trabalhadora, que está tentando ganhar a vida honestamente.

Não eram nem sete horas quando o ataque começou. Um, dois, duzentos. Uma infestação. Indefesas, as pessoas começaram tentando se esquivar discretamente. Em pouco tempo, mandaram a classe pro inferno e partiram para a luta franca, na tentativa de proteger suas partes mais íntimas. Em vão. Eu mesma acho que engoli um ou dois sem querer, por mais que tenha tentado manter a boca fechada. Mas eles não perdem por esperar. Ah, não perdem, não.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Pequenos estratagemas femininos

Em tempos em que as pessoas passam mais tempo diante dos próprios computadores do que de outros seres humanos, fica cada vez mais comum fazer virtualmente coisas que antes fazíamos presencialmente. Exemplos evidentes são compras de natal, supermercado, presentes de aniversário e casamento, passagens aéreas e... relacionamentos. Que atire o primeiro mouse sem fio quem nunca nem tentou, nem por curiosidade, dar uma olhadinha em um site de relacionamento, nem que fosse só pra ver como era e tirar um sarro de quem estava lá, na maior seriedade, tentando ser feliz.

Tudo isso só pra dizer que, hoje em dia, não é raro pessoas conhecerem outras pessoas sem as “conhecerem” de fato. Eu explico. Antes, todo mundo vinha com referência (o que não era garantia de nada, mas acalmava o espírito.). “Ah, o fulano é amigo do Paulão, sabe? Aquele, que é primo do meu tio.” “A Fulana? Ah, uma moça ótima. Conheço há muitos anos. Joga biriba com minha avó toda quarta à noite.”

Hoje, a moça conhece o moço numa sala de bate-papo ou num site de relacionamento, trocam um punhado de e-mails, passam para o MSN, evoluem para o telefone e finalmente, depois de tempos que variam entre duas horas e dois meses, dependendo do caso, marcam um encontro real. Geralmente um café, que é pra não durar muito se um ODIAR o outro.

Pois é. Só que em tempos de “encontros às escuras”, tornam-se necessárias algumas precauções, apenas para garantir a segurança das partes envolvidas.

Trim, trim....
_ Alô?
_ Ana?
_ Eu.
_ Oi, é sua amiga.
_ Ooooooooooooiiiiiii, querida. Tudo bem?
_ Tudo. Sabe o que é? É que eu vou encontrar um moço no sábado à noite e... dava pra você me ligar lá prumas dez?
_ Claro, sem problema. Já vou deixar o celular programado.
_ Ok. Depois te mando os dados por e-mail.

Tudo entendido. Quando uma moça sai com alguém que ela nunca viu antes, ela SEMPRE passa o que sabe do sujeito para uma amiga. E a amiga (ou amigas, porque pode ser necessário mobilizar mais de uma), liga no horário combinado e nem um minuto a mais, para saber se está tudo OK.

Trim, trim....
_ Querida?
_ Oi, Ana.
_ E aí? Tá tudo bem?
_ Ah, tá.
_ Precisa de resgate?
_ Não. Tô aqui com o Praxedes... lembra, que eu comentei dele?... no Grão Café. Posso te ligar depois?
_ Pode. Tchau.

Sinal de que está tudo bem. Adicionalmente, o Praxedes já fica avisado que alguém sabe quem ele é, com quem está e aonde.

Se houver qualquer traço de hesitação, por menor que seja, várias coisas podem acontecer:

1- A amiga ligar de novo, depois de 10 ou 15 minutos, pra saber se está tudo bem MESMO.

2- A amiga pedir pra outra amiga ligar em 10 ou 15 minutos para ouvir uma segunda opinião. Aí, a amiga que ligou depois liga para a amiga que ligou primeiro, as duas discutem a situação da terceira amiga e, dependendo da conclusão, rezam três Aves-Marias e um Pai-Nosso pelo sucesso do encontro.

3- A amiga que ligou primeiro enfiar uma sirene no carro, passar na casa da amiga que ligou depois e saírem em desabalada carreira rumo ao local do encontro, para simular um encontro casual e, assim, salvar a amiga número três do encontro desastrado.

4- A amiga que ligou primeiro ligar diretamente para o celular do Praxedes (ela recebeu os dados por e-mail lembram?) e simular um seqüestro telefônico para que a amiga que está em maus lençóis tenha a chance de fugir.

5- Há, ainda, a solução clássica: a própria vítima do encontro desastrado, aproveitando o telefonema no horário combinado, arregala os olhos, leva a mão ao peito e diz, com voz embargada: “o quê?! Oh, não! É mesmo? Tô indo já praí!” E sai, em desabalada carreira, sem nem se dar ao trabalho de dizer ao Praxedes o que aconteceu.

6- Finalmente, há o método nu, cru e peladão, reservado apenas para emergências porque mulher não é disso. É um pouco rude, sem dúvida, mas é definitivo. Consiste em olhar o Praxedes bem nos olhos e dizer: “quer saber? Me enganei. Você é chato pacas. Adeus!”

Se os homens entendem todo o racional desse pequeno estratagema feminino? É claro que não. Aliás, não só não entendem, como acham que é “coisa de adolescente”, como chegou a afirmar um representante do rol dos recentemente dispensados. Mas que funciona, funciona. E a mulherada usa, sim. Usa e se orgulha. E podem estrebuchar à vontade que a gente nem liga.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Enquanto isso, no leste europeu...

Crianças absorvem tudo.

Por causa de um vídeo game, meu filho aprendeu que há lugares como Peru, Bolívia, conhece a bandeira do Nepal e outro dia, me disse que queria morar no Cazaquistão.

_ Mas, filho! Logo no Cazaquistão?! É tão longe...
_ E daí?
_ Daí que eu vou morrer de saudade.
_ Dãããns! Você vai comigo, né, mamãe?
_ Mas e a sua irmã, e a babá, e a vovó, e o meu trabalho...?
_ Ah, eles podem ir também.
_ Mas mudar de país não é fácil, meu filho. Tem que se programar, juntar dinheiro, aprender o idioma.
_ Mas eu sei falar a língua do Cazaquistão!
_ Ah, sabe, é? Então fala aí pra eu ver.
_ Qjnrd ogun flvnfiv kcbv lifu gilfbvfçfgjn jkvc, viu?
_ Não entendi nada.
_ É assim mesmo, mamãe. Eu também não entendo quando eles falam.


_ Mamãe?
_ O que foi, meu filho?
_ Meu amigo não foi à escola hoje.
_ É mesmo? E por quê?
_ Porque o pai dele bateu o carro e está no hospital.
_ Que horror, filho! E foi grave?
_ Parece que sim. A professora estava dizendo que foi traumatismo ucraniano.

Força de expressão

Eu tenho simpatia por rugas. Não que seja entusiasta do estilo maracujá de gaveta, nem que ache que as pessoas devam abrir mão de se cuidar. Muito pelo contrário. Mas creio que as rugas digam muito sobre a vida. Basta olhar um rosto um pouco além dos quarenta para saber sem falar, sem conversar, sem nem conhecer, como é a pessoa.

As famosas rugas de expressão marcam justamente o quê? As expressões, ora essa! Assim, uma pessoa sisuda, preocupada, terá sulcos profundos ente os olhos, na linha da sobrancelha e outros tantos vincando a testa. Já alguém que tenha o hábito de rir muito, terá marcadas as linhas laterais entre o nariz e a boca (o famoso “bigode chinês”) e também, inevitavelmente, marcas finas nos cantos dos olhos.

A vida maltrata, eu sei. Testa ao extremo até o mais otimista dos otimistas, mas confesso que tenho uma empatia imediata por pessoas que mostram no mapa do rosto que já sorriram muito.

Outro dia, estava me olhando no espelho e descobri algumas coisas sobre mim...

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Me ame quando eu menos mereço,
que é quando eu mais preciso.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Pé de valsa

As pessoas aprendem a dançar pelos mais variados motivos, dos mais aos menos nobres. Os meus foram muitíssimo pouco nobres, mas isso não vem ao caso. O fato é que lá pelos dezesseis anos fui matriculada numa escola de dança de salão.

A dança sempre fez parte da minha vida. Comecei com o ballet clássico, como toda mocinha elegante, até que um belo dia, lá pelos nove anos, a professora resolveu me pôr na real:

_ Olha, eu não sei se é a sua intenção, mas você é grande e pesada demais para ser uma bailarina.
(_ E você é grossa demais para ser uma professora!)

Saí. De lá, depois de passagens curtas pelo ballet moderno e pelo jazz, desisti. Até a dança de salão aparecer na minha vida. As aulas eram à noite, na mesma escola que eu freqüentava, pela manhã. A professora era dona Nice Poças Leitão, que ensinou a bailar centenas de paulistanos bem nascidos, a partir da década de 1950. Dona Nice, uma senhora já algo avançada na casa do setenta, era dona de um Fusca verde-azeitona, único dono, de um vigor invejável e de uma determinação férrea. Entrei lá com a promessa de que ela era capaz de ensinar a dançar até uma geladeira, modelo grande.

As aulas eram uma ou duas vezes por semana, dependendo do nível do aluno. Assim que chegávamos, a Madame ia tratando de acomodar todos, moças de um lado do salão, rapazes do outro. No bolso dos rapazes, necessariamente, um lenço de tecido, cobrado incansavelmente em todas as aulas.

_ Onde é que você pretende enxugar o suor, homem? Na saia da moça? _ perguntava a Madame, entre divertida e severa.
_ Mas Madame... não serve lenço de papel? _ perguntava a vítima, suando ainda mais.
_ Qual o quê, homem! Isso rasga, desmancha... é um horror! Já pensou, você, com o rosto cheio de fiapos de papel no meio do salão?! Tsk, tsk, tsk! E se a dama precisar de um lenço? Você vai dar esse? De papel?!

Cruzar as pernas, nem pensar.
_ Moças educadas não cruzam as pernas _ dizia a Madame. _ No máximo, cruzem os tornozelos para trás e deixem as mãos repousando sobre o colo.

Sapatos, para ambos os sexos, apenas com sola de couro. Aparecer de tênis em uma aula da Madame era o mesmo que pedir para passar a noite de castigo, sentado.

As unhas também eram revisadas quase todas as aulas. Não precisavam estar feitas, mas tinham que estar limpas e cortadas. Unhas roídas ganhavam um severo ar de reprovação.

E, com tantas regras, sobrava tempo para dançar? E como! Saíamos de lá, invariavelmente, um ou dois quilos mais leves, tamanha era a intensidade do exercício.

As turmas eram divididas em três, cada qual com o seu dia na semana. Os principiantes – ou “abacaxis”, como a Madame costumava chamar carinhosamente – iam na segunda-feira. Os intermediários, iam na terça e os “profissionais”, na quarta. A parte boa era que, conforme os alunos iam evoluindo, eram convidados a mudar de dia e a continuar freqüentando os dias dos iniciantes (e intermediários) para ajudar os alunos mais novos. Assim, lá pelas tantas, podíamos dançar três vezes por semana. E um pouco mais além, turmas formadas – com grupos, casais e panelinhas – dançávamos os três dias de aula e mais nas quintas-feiras, numa extinta casa de dança e aos sábados, geralmente numa gafieira.

Nas aulas, tudo muito certinho. A um sinal da Madame, cada “cavalheiro” devia partir do seu lado do salão e tirar uma “dama” para dançar. Tudo comme il fault, com direito a cortesia, mão estendida e tudo. Um show. Para uma menina de dezesseis anos, era o que de mais próximo havia de uma lady, prestes a dançar um minueto em um castelo renascentista.

No salão com mão de direção, os ritmos se sucediam deliciosamente. Fox, samba, valsa (a lenta e a vienense), rumba, rock’n’roll, polca, tango, bolero, gafieira, hully-gully, cha-cha-cha... um a um os passos de cada ritmo iam sendo desvendados diante dos nossos olhos e pés, progressivamente mais hábeis e firmemente guiados pela Madame.

Nas primeiras aulas, era comum a vontade de desistir, confrontados cruamente com a certeza de que havíamos nascido com dois pés esquerdos. Mas depois alguns meses, éramos tão bons que fechávamos pistas, dançávamos de graça nos lugares que freqüentávamos, ajudávamos a treinar debutantes de clubes e éramos muitas vezes abordados por estranhos, perguntando como, onde e porquê.

Bons tempos... Tempos leves. Pisando em nuvens e pensando em nada. Dançando, apenas.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Enganchada

Aí, você tem 12 anos e sua escola resolve fazer uma “saída pedagógica” de três dias pelo interior de São Paulo. Originalmente, você ia para Brasília, mas com o caos aéreo e com essa quantidade de aviões caindo mais do que jabuticaba do pé, todos viram por bem fazer uma viagem mais pé no chão, de ônibus mesmo. A idéia é visitar lugares relacionados às matérias que você está tendo e, com isso, enriquecer o tal “conteúdo programático”.

Seus pais conversam, combinam, parcelam e patrocinam a sua viagem. Afinal, você é tão boa aluna que merece. Na esteira da viagem, você ganha iPod, roupa nova, caderno novo e um tratamento de beleza completo, para arrasar com a turma.

Você vai, volta e, na chegada, tem “uma coisa” pra contar.

_ O que foi, filha?
_ Er... nada. Quando você chegar, eu te falo.
_ Mas foi algum problema, você se machucou, quebrou algum osso?
_ Er... não. É melhor a gente conversar pessoalmente.
_ Foi pior que isso?! Quebrou o iPod?
_ Não, mamãe...

A mãe chega em casa e fica sabendo: você, que é das melhores alunas da classe, que sempre tira notas ótimas, que é famosa por sua responsabilidade, foi suspensa. SUSPENSA por um dia de aula, por indisciplina.

Sua mãe, perplexa, tenta entender o que aconteceu. Você explica que a professora que acompanhou o grupo é louca, que a coordenadora é histérica, e que você simplesmente foi ao quarto de duas amigas com a sua colega de quarto, na hora de dormir. Aos poucos, a verdade vem à tona: você e sua amiga ficaram desaparecidas por uma hora e meia, em um hotel onde havia outros hóspedes, depois da hora de dormir. Por segurança, deixaram a TV ligada no quarto para parecer que estavam lá. Por segurança, quando a professora descobriu a ausência de vocês e bateu no quarto das amigas, elas disseram que “vocês não estavam lá de jeito nenhum”. Por segurança, quando a professora entrou no quarto das amigas, uma hora depois, para fazer uma busca, vocês se esconderam no banheiro. Por segurança, quando vocês finalmente foram encontradas, já de volta ao quarto, juraram que tinham se ausentado por “um minutinho só, para buscar água”.

Pois bem. Por segurança, a professora distribuiu duas advertências e duas suspensões muito bem merecidas, uma das quais para você.

Em casa, apesar de achar que “ficar sem ir à aula não é castigo”, você tem que ouvir um monte da sua mãe. E do seu pai. E perder o direito de falar ao telefone até terça-feira. E ao celular. E que acordar cedo na segunda, exatamente como se tivesse aula. E que passar a manhã toda fazendo lição. E estudando tabuada. Sem televisão. E quando você acha que já passou vergonha demais, que já pagou mico demais e que já se arrependeu demais, você descobre que o pior ainda está por vir: sua mãe tem um blog.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Presente

_ Meu filho, você já sabe o que quer no dia das crianças?
_ Já, sim, mamãe.
_ E o que é?
_ Eu quero um adulto.
_ Um adulto?
_ É. Pra brincar comigo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Projeto para hoje

Primeiro isso,

Com isso.

Na seqüência isso,

E depois isso.

Ah, e se quiser, pode trazer isso.


Sim. É só. Obrigada.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Silêncio

Era um casal assim, como tantos outros. Tinham seus momentos. Às vezes, eram até felizes. Mas a vida massacra, a rotina massacra e eles próprios, um ao outro se massacram.

Não sabiam bem o porquê, mas mergulhavam cada vez mais naquele caldo perverso em que não bastava sofrer; era preciso causar dor.

À mesa, tinham o cuidado de não se sentar frente a frente para não terem que se olhar. Interrupções eram bem vindas. Qualquer coisa que justificasse uma fuga breve.

Para distrair, brincavam com copos, talheres e até com a comida, empurrando os volumes de lá para cá.

Entre si, apenas o essencial:

_ Quer mais sal?
_ Quero.
_ Vou buscar.

_ Faltou o molho.
_ Eu não quero molho.
_ Mas eu quero.

Entre os silêncios cada vez mais densos, trocavam farpas que ficavam enganchadas, arranhando a garganta como espinhas de peixe.

Na intimidade dos próprios pensamentos, às vezes lembravam dos bons tempos em que os assuntos não tinham fim, as histórias se encadeavam e as descobertas se sucediam, carregadas de encantamento. Mas só às vezes. Na maior parte do tempo, se contentavam em pensar no dia passado, no dia seguinte e na próxima garfada – na comida ou no outro – pura e simplesmente.

Sentados ali, eram dois corpos curvados, pesados, de rostos vincados e olhos opacos.

No fundo, continuavam sendo o que haviam sido desde o começo: um casal assim, como tantos outros.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Percalços

Lembra quando você esquecia da vida e dizia na escola que jurava por Deus, pelo seu pai e pelo seu irmão, que o seu cachorro tinha comido a sua lição de casa (às vezes, você não tinha irmão e nem cachorro)?

Se ninguém acreditava já naquela época, imagine nos dias de hoje, você, na flor dos seus cinco anos de idade, chegando para a professora do Jardim II na seguinte situação:

_ Menino, cadê sua lição?
_ Hmmmm... eu não trouxe.
_ Por quê, posso saber?
_ Porque eu tive um problema.
_ Sei. Que tipo de problema?
_ O meu peixe comeu.

Detalhe: a gente também não tem peixe.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Permanências - da série, "altíssima relevância"

Há uma coisa que anda me preocupando, mas antes uma perguntinha: alguém aí se lembra de uma fase de moda mais medonha que os anos oitenta? Tá bom, os anos setenta também não foram fáceis, mas pelo menos eram coloridos e as pessoas não precisavam usar peças com formato de ameba mutante.

Os anos oitenta foram a época das calças clochard e semibag, que deixavam qualquer sílfide com silhueta de bujão de gás, dos suspensórios, das ombreiras – tinha até sutiã com ombreira (!!!) – das saias balonê, das cinturas altíssimas, das blusas tipo saco, dos brincos do tamanho de um CD e de outras aberrações do gênero. Era pavoroso, mas a gente usava e ainda achava que estava abafando.

Como tudo na moda vai e volta, mesmo o que merecia ser esquecido para sempre, estamos vivendo agora um revival maldito dos anos oitenta. Engordou dois quilos, vinte, cinqüenta? Não tem problema! Basta jogar uma blusa tipo saco no corpanzil e pronto. Ninguém vai notar, já que todas as peças são feitas no tamanho único, padrão lona de circo.

Há uma moda típica dos anos oitenta que ainda não voltou: os cabelos com permanente. Eu, como locomotiva fashion que gostava de achar que era, usei por aaaaaanos a fio, na tentativa vã de ficar igualzinha a Gal Costa, só que loira. É claro que não deu certo, mas eu fazia a coisa de seis em seis meses, religiosamente, “penteava” a carapinha com algo parecido com um garfo gigante e não secava com secador nem que fosse passar as férias na Islândia. Era um horror. Depois do terceiro permanente, o cabelo ficou com aquela aparência de miojo mal cozido, esturricado de tão seco e com o volume equivalente ao de uma vassoura de piaçava muito usada. Pavoroso, mas tudo o que é ruim pode piorar. Siiiiiiiiiimmm, torcida brasileira, porque pra ficar bonita mesmo, eu fazia permanente na cabeça toda MENOS na franja. Porque a franja tinha que ter aquele ar de Farrah Fawcett no ventilador. É evidente que com todo aquele volume atrás, era impossível a pobre franja ficar no lugar. Precisamente por isso, eu lavava a coitada – da franja – todos os dias, pela manhã, na pia, com shampoo e condicionador & secava com secador (a franja podia, porque não tinha permanente). E lá ia eu, me sentindo a mais cabeluda das cabeludas, a mãe do Rei Leão, a mais volumosa das ovelhas da parada.

Um dia, avisei em casa que ia fazer um novo tipo de permanente: “com leite”. Meu pai morreu de rir, dizendo que nunca tinha sabido que leite enrolasse cabelo. Ué?! Qual é o problema?! Hoje em dia não tem “escova de chocolate”? “Depilação com mel”? Fui lá, o maldito cabeleireiro enrolou meu cabelo em três mil rolinhos e fez aquela fórmula demoníaca com três pingos de leite e mais as doses normais de creolina e soda cáustica necessárias para garantir o efeito “permanente” da obra. Para piorar, não podia lavar a cabeça por três dias. O efeito foi tão espantoso, que acho que foi o meu último permanente. Ainda bem que me sobraram uns poucos fios – os heróis da resistência – que me acompanham fielmente até hoje. Ainda bem que a moda não voltou.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Subwoofer

Fico aqui, pensando... o que será que acontece com os cachorros quando eles saem de moda? Alguém dirá: ora, os criadores param de cruzá-los, naturalmente. Sei... Só que pensa só no risco do collie, do pastor alemão ou do husky siberiano voltarem à moda? Os últimos, coitados, foram a Lassie que a Elizabeth Taylor levava para passear quanto tinha 14 anos (a Lizzie, não a Lassie) e o Rin-tin-tin, que arrastava o Cabo Rusty quando ainda nem existia TV a cores. TEM QUE HAVER uns bichos em idade reprodutiva para dar início a uma nova onda de filhotes, não é? Se não, o que faremos? Importaremos embriões congelados de poodles toy de algum banco de criogenia canina?

O fato é que eu sei, você sabe e todo mundo sabe que o cachorro da moda é o Labrador. Aquele, grandão, mais ou menos peludo, com cara de boa gente, mas outro dia, eu fiquei mesmo com vontade de ter um doberman. Aquele pretão, grandão, com cara de bravo, que – dizem as más línguas – foi uma raça desenvolvida pelos alemães na época da Segunda Guerra Mundial.

Pois bem. Estava eu em uma reunião sobre aparelhos de som e home theaters (não, isso não é assunto de meninos. Aposto um iPod pink, como eu entendo mais de aparelhos de som e home theaters que muito marmanjo barbudo por aí! Ah, e se quiserem discutir carros com tração 4x4, eu também topo.), quando o gerente de produto começou a falar em “subwoofer”.

_ Ah, porque esse equipamento tem subwoofer... porque o subwoofer reforça os graves e... ah, esse aqui tem um sobwoofer com woofer de 25 cm e Massive Bass System...

E eu ali, interessadíssima naquele conteúdo eletrizante, comecei a pensar no nome “subuúfer”, “subuúfer”. “subuúfer com uúfer”... gostosa, essa palavra. Me divirto pensando nos meninos que programam o filtro de buscas de um site. Uma das missões deles é garantir que as pessoas encontrem o que estão procurando, mesmo quando digitam a palavra errada, ou seja, eles devem fazer um filtro à prova de analfabetos (ou quase). E lá vai o cabra, procurar um subuúfer para incrementar o som da sua Brasília 77, caramelo. Ele junta uma grana e entra no site, cheio de amor pra dar. Só que não tem a menor noção de como se escreve o nome do troço. E lá vai ele: subuúfer, çubiúfi, subiuúfi, ssubiúfi...

Mas a melhor função para o nome é mesmo a que eu pensei primeiro. Subwoofer é o nome perfeito para um doberman, daqueles bem pretos, bem com cara de maus.

_ Subwoofer, junto!
_ Subwoofer, rola!
_ Subwoofer, dá a patinha! Finge de morto!

Não ia ser legal? A dúvida é: será que eu ainda consigo arrumar um doberman hoje em dia?

É... Essas reuniões de produto são mesmo muito produtivas.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O incrível é que às vezes funciona

Imagine você, cidadão norte-americano com mais de sessenta entradas no Brasil nos últimos quarenta anos. Imagine que por essas e outras, lá pelo ano de 1975, você ganha direito a um visto permanente. Esse visto, dentre outras coisas, assegura sua entrada e saída do país quando você bem entender. Pois bem. Lá por 2007, digamos que no começo de setembro, você compra uma passagem em um vôo diurno partindo de Miami para uma vinda rápida de quatro dias e embarca.

Chegando aqui, uma autoridade da imigração diz que como você não aparece há mais de dois anos, vai ter que reter seu passaporte & seu visto permanente e que você será deportado no próximo avião.

Detalhe: não; você não é um traficante. Nem uma garota de programa. Nem um estelionatário. Você é um pacato cidadão de meia idade, que deseja apenas resolver algumas pendências e chispar de volta para o primeiro mundo.

Paciente, você suspira, argumenta, espera a autoridade chamar o supervisor, espera o supervisor jantar, espera mais, explica que não pode ser deportado e, uma hora e meia e um ou dois Benjamins Franklins depois, finalmente consegue ser “liberado”.

_ Meu mala, porrr favorrr?
_ É aquela ali, senhor, rodando sozinha na esteira.

Você pega a Samsonite preta e finalmente deixa o aeroporto.

Uma hora depois, finalmente em casa e louco por um banho, você estranha o fecho. Depois, estranha a etiqueta laranja de “bagagem pesada”. Então, estranha a falta da etiqueta de “bagagem prioritária” e, finalmente, estranha o nome no tag de identificação. “Otto Koening”. Não é você. Definitivamente. Você pode não se lembrar de muita coisa, mas do seu nome, ainda lembra.

São onze e meia da noite e você sabe como são essas coisas. Sabe como é o Brasil. Sabe que está no meio de um feriado. Sabe que suas chances de reaver a própria bagagem são muito, muito próximas do zero e que na melhor das hipóteses, sua mala será entregue daqui a um mês ou dois em Miami, arrombada e com metade do conteúdo faltando. Você já passou por algo parecido em Roma e até hoje não sabe onde seus pertences foram parar. De repente, esse Otto Koening usa o mesmo número que você... mas você é um homem e princípios e resolve ao menos tentar, já pensando onde vai comprar uma escova de dentes, uma lâmina de barbear e uma ou duas cuecas para usar nos próximos dias...

Desanimado, acessa o site da companhia aérea na Internet e fica surpreso quando encontra um telefone para ligar. Disca os números na certeza de que não será atendido. Mas é. Do outro lado, um funcionário chamado André ouve atentamente sua história, diz que vai informar o sr. Koening que a mala dele foi encontrada e que ligará novamente, assim que as malas que restaram dos vôos a partir das 20h30 subirem para o setor de bagagens perdidas. Você duvida que ele ligue e pensa em dizer que manterá a mala do Sr. Koening como “refém” até encontrar a sua. Mas ele liga. Não uma, mas duas vezes. Liga às onze e quarenta – DEZ minutos depois da sua ligação – para dizer que o sr. Koening já foi informado e que ficou muito aliviado. Depois, liga novamente à meia-noite para dizer que a sua mala foi localizada e que o setor de bagagens extraviadas da companhia aérea funciona 24 horas por dia. Assim, se você quiser ir lá imediatamente, será um prazer entregar a sua mala e receber a do sr. Koening.

_ Mas eu vai terr que fazer o alfândega de novo?
_ Não, sr. Sua mala já está liberada.
_ Mas eu só vai conseguirr chegarr aí daqui a uma hora.
_ Perfeitamente, sr. O serviço funciona 24 horas.
_ E você vai estar aí?
_ Sim, sr. Pode me procurar. Meu nome é André.

Você chega ao aeroporto à uma e meia da manhã, vai ao setor de bagagens extraviadas, entra na salinha e vê não um, mas cinco funcionários ativos e dispostos, trabalhando febrilmente para que outros passageiros tenham um desfecho tão feliz quanto o seu.

Você se apresenta e, controla o desejo de dar um beijo no André. O processo de troca das malas não leva mais de um minuto e meio. Você dá a mala do sr. Koening, pega a sua, assina um termo simples isentando a companhia aérea de responsabilidades futuras e está livre. Antes de sair, abre a mala e confere o conteúdo. Está tudo lá, exatamente do jeito que você colocou, cerca de 12 horas antes, lá no primeiro mundo. Agradecido, oferece um Ulysses F. Grant ao funcionário. Ele recusa educadamente e diz que não há necessidade de pagar.

Você sai do aeroporto leve, aliviado e ligeiramente incrédulo com a eficiência da coisa toda. O primeiro mundo, mesmo que raramente, é aqui.

Ah, a companhia aérea é essa. Precisando, não hesite em procurar pelo André.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Organização & Método

Deve ser contagioso. Só pode ser alguma espécie de epidemia. O fato é que em minhas andanças virtuais recentes, tenho deparado com vários amigos autores de blogs preocupadíssimos com a possibilidade de terem TOC.

O TOC, para quem não sabe, é a sigla para Transtorno Obsessivo-Compulsivo, uma doença mental crônica que aprisiona o paciente a padrões de pensamentos e comportamentos repetitivos. Para aliviar esses pensamentos, a criatura recorre a compulsões como lavar as mãos inúmeras vezes, contar coisas aparentemente sem sentido, como somar números de placas de carros, somar letras das palavras ou arrumar objetos sem parar, buscando simetria.

Apesar de parecer engraçado a ponto de já ter sido explorado algumas vezes no cinema, como aqui e aqui, o TOC provoca muito sofrimento – em quem tem e em quem convive – porque, ao contrário do que a gente pensa, o paciente de TOC tem total consciência de que suas atitudes são esquisitas. Assim, ele sabe em cada uma das oitocentas e doze vezes em que lava as mãos todos os dias, ou que nas dezessete vezes em que bate na moldura da porta antes de sair de casa, que está fazendo uma coisa fora do normal, mas simplesmente não consegue evitar.

Felizmente, há remédios que, associados à psicoterapia, ajudam muito a aliviar os sintomas do TOC, coisa com a qual eu não me preocupo em absoluto, já que sou uma pessoa totalmente sem manias, que simplesmente gosta de certas coisas organizadas de determinada forma.

Nos restaurantes, por exemplo, se o prato tiver logotipo, eu preciso que ele – o logotipo – fique posicionado exatamente ao meio-dia (considerando que o prato é um relógio; não tem nada a ver com o horário da refeição, naturalmente. Até porque, eu não sou doida!). Não é cacoete, é só que se o logotipo não ficar lá em ciminha, direitinho, eu perco a concentração e não consigo comer direito. Tanto, que se o prato for trazido por um garçom desatento, antes mesmo de começar, eu coloco o meu prato na posição “certa”. Ah, tem a ordem da comida também. Eu como com muito mais prazer se a refeição tiver sido colocada “direito”, com a carne (ou peixe, ou frango) às oito horas, o acompanhamento (arroz, batatas ou massa) às onze e os legumes às quatro. Faz todo sentido do mundo porque aí, eu posso comer em sentido horário, a partir da carne. Vocês, que querem pegar no meu pé, que eu sei, provavelmente dirão: “Pô, Ana, mas se os legumes estão às quatro horas e você quer comer no sentido horário, devia começar por eles, que vêm antes da carne, às oito, certo?” Ao que eu, educadamente, responderei: “O prato é meu, a ordem é minha e eu como como quiser!” Como sou uma pessoa razoável e flexível, se se tratar de um prato de massa ou de risoto, sem carne e sem acompanhamentos, a disposição não importa. Desde, é claro que o logotipo esteja ao meio-dia em ponto.

E já que estamos falando em comida e em horários, tenho isso com relógios também. Sempre que estou no carro, com o rádio ligado e o locutor informa as horas, eu confiro no relógio do painel e no meu relógio de pulso. Se o celular estiver à mão, confiro nele também. E se algum deles estiver diferente, por um minuto que seja, eu trato de sincronizar rapidinho. Senão, sabe-se lá, né? Alguma coisa terrível pode acontecer.