sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Extermínio

A vida é uma luta. A gente mata um leão por dia, todo dia.


Mata um leão por dia e ainda reclamam se a gente está cansada à noite; se não tem pique pra sair; se não consegue dar mais "tempo de qualidade" aos filhos...

A gente mata um leão por dia e ainda dizem que a gente devia dar mais, sorrir mais, brincar mais, pensar menos...

 

A gente mata um leão por dia. Com febre, com dor de cabeça, com sono, com o coração partido e ainda precisa se desculpar porque está mal humorada...

 

A gente mata um leão por dia e tem que ouvir que é fria, que esqueceu de depilar, que precisa retocar as raízes, que devia escolher outro esmalte...

 

A gente mata um leão por dia e ainda é posta contra a parede, e denegrida, e diminuída, e humilhada.

 

A gente mata um leão por dia e não tem apoio quando mais precisa.


A gente mata um leão por dia. 


Tem dia que mata dois. 


E não é suficiente.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Coisa de bicho

Em casa, de vez em quando, a gente vê Animal Planet. Gosto de ver os bichos com você, filho (menos quando são insetos, porque aí me dá coceira televisiva no nariz, mas isso a gente fala outra hora) e você também adora. Sua irmã não liga muito, mas você ainda se emociona com os pingüins, os elefantes, as zebras, os grandes felinos e as baleias. Gosta de ver as dinâmicas entre pais e filhos; gostava dos cangurus até ver de que jeito os filhotes saem da barriga, quando vão pra bolsa da mãe.


Eu acho engraçado que quanto menor a gente é, mais bichinho. Tá certo que alguns adultos são uns animais, mas não é disso que a gente está falando. O assunto aqui é instinto animal e você ainda tem isso muito aguçado. Quando a gente vai brincar, você sempre dá um jeito de tocar em mim e quando a gente lê à noite, antes de dormir, você sempre se deita ao meu lado e encosta a cabeça na minha, meio que como desculpa pra ver melhor os desenhos. Mas eu sei que não é por isso, filho. Sei que da mesma forma que os bichos que a gente vê na TV, mamães e filhotes humanos também têm essa necessidade de toque e faro.


E é tão bom cheirar você, filho... mesmo no fim do dia, quando você já viajou para mil planetas, já desbravou vulcões, já lutou com dinossauros e sua cabecinha está suada, você cheira tão bem.... acho que é porque cheira a meu. E eu me pego na sua cama ou na porta da sua classe, na escola, cheirando seu rosto, seu pescoço e te enchendo de beijos, enquanto você faz cara de sufocamento e pergunta se eu estou de batom. E eu morro de rir e digo que “com ou sem batom, eu beijo, sim; beijo o quanto quiser e vou continuar beijando porque você é meu, fui eu que fiz e pronto”.


Depois do banho, a gente passa lavanda. Eu capricho na sua nuca, nos braços e passo um pouco no pescoço, embaixo no queixo, dizendo que é pós-barba. Você morre de rir e diz que eu sou boba. Sou nada, filho. Porque ainda ontem você era um bebezinho que cabia em cima de um travesseiro e hoje você já tem seis anos, já escreve e no ano que vem, já vai pra escola de gente grande. Daqui a pouco vai usar pós-barba de verdade, vai perder esse instinto de bichinho (como a sua irmã perdeu) e vai querer distância de uma mãe que insiste em fungar no seu pescoço. Tudo bem, filho. É justo. Eu também não consigo nem imaginar minha mãe me cheirando hoje em dia. Ainda bem que a natureza fez tudo tão direitinho, que algum tempo depois que perde esse instinto, a gente tem filhos e netos. Assim, tem sempre alguém pra gente cheirar e alguém louco pra ser cheirado por perto.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Infinito

_ Mamãe, o que é infinito?

_ Ah, meu filho, infinito é uma coisa que não acaba nunca; sem fim.

_ E o número infinito?

_ Os números são infinitos exatamente por isso; porque não têm fim.

_ Como assim?

_ Assim, ó: mesmo que você pense em um número muito, muito, muito grande mesmo, se somar mais um, vai ter um número maior ainda.

_ Mas e se eu pensar no maior número do mundo?

_ É isso que a mamãe está tentando dizer: o maior número do mundo não existe.

_ Como não existe?

_ Não existe, filho. Os números são infinitos.

_ E um trilhão?

_ Não é o último.

_ E um bilhão de trilhões?

_ Ih, tá longe de ser o último...

_ Eu vou inventar o último número.

_ Não vai.

_ Como “não vou”?

_ Não vai porque não existe, filho.

_ E se eu conseguir?

_ Bem, se você conseguir, provavelmente ganha o Prêmio Nobel da Matemática, que nem aquele maluco que provou que um coelho pode virar uma bola, mas um donut, não; mas eu não sei se é um bom negócio.

_ Um gazilhão. Pronto. Um gazilhão é o último número.

_ Não é.

_ Como não é, mamãe? Eu estou dizendo que é.

_ E eu estou dizendo que não é, filho porque se você somar um, fica um gazilhão e um.

_ Então pesquisa pra mim...

_ Não adianta eu pesquisar, filho. Essa resposta não existe, entendeu?

_ Então faz assim, ó: pergunta pra alguém inteligente e depois me conta, tá?

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Vaidade ou desapego?


Está chovendo em São Paulo. Muito. Aquela chuva implicante, que molha sapatos e barras de calças e torna o simples ato de andar na rua um desafio.

Quando chove assim, cada um se defende como pode. Há os privilegiados - a não ser pelo trânsito - que vão de uma garagem a outra, secos como um Dry Martini e há os que são obrigados a enfrentar alguns quarteirões, a pé, debaixo d'água. Hoje, pela manhã, vi uma surpreendente integrante do segundo grupo. Não fosse a minha preguiça imensa de baixar fotos tiradas no celular, eu teria a prova para mostrar aqui.

Pois lá ia a moça, apressada, bolsa firmemente presa ao corpo, capa úmida, calças escurecidas e touca de banho na cabeça. Florida. Não. Não era um chapéu, nem um gorro, nem um boné. Sim, eu tenho certeza. Séria e determinada, deve ter optado pela durabilidade do penteado em detrimento da estética.