quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Pé de valsa

As pessoas aprendem a dançar pelos mais variados motivos, dos mais aos menos nobres. Os meus foram muitíssimo pouco nobres, mas isso não vem ao caso. O fato é que lá pelos dezesseis anos fui matriculada numa escola de dança de salão.

A dança sempre fez parte da minha vida. Comecei com o ballet clássico, como toda mocinha elegante, até que um belo dia, lá pelos nove anos, a professora resolveu me pôr na real:

_ Olha, eu não sei se é a sua intenção, mas você é grande e pesada demais para ser uma bailarina.
(_ E você é grossa demais para ser uma professora!)

Saí. De lá, depois de passagens curtas pelo ballet moderno e pelo jazz, desisti. Até a dança de salão aparecer na minha vida. As aulas eram à noite, na mesma escola que eu freqüentava, pela manhã. A professora era dona Nice Poças Leitão, que ensinou a bailar centenas de paulistanos bem nascidos, a partir da década de 1950. Dona Nice, uma senhora já algo avançada na casa do setenta, era dona de um Fusca verde-azeitona, único dono, de um vigor invejável e de uma determinação férrea. Entrei lá com a promessa de que ela era capaz de ensinar a dançar até uma geladeira, modelo grande.

As aulas eram uma ou duas vezes por semana, dependendo do nível do aluno. Assim que chegávamos, a Madame ia tratando de acomodar todos, moças de um lado do salão, rapazes do outro. No bolso dos rapazes, necessariamente, um lenço de tecido, cobrado incansavelmente em todas as aulas.

_ Onde é que você pretende enxugar o suor, homem? Na saia da moça? _ perguntava a Madame, entre divertida e severa.
_ Mas Madame... não serve lenço de papel? _ perguntava a vítima, suando ainda mais.
_ Qual o quê, homem! Isso rasga, desmancha... é um horror! Já pensou, você, com o rosto cheio de fiapos de papel no meio do salão?! Tsk, tsk, tsk! E se a dama precisar de um lenço? Você vai dar esse? De papel?!

Cruzar as pernas, nem pensar.
_ Moças educadas não cruzam as pernas _ dizia a Madame. _ No máximo, cruzem os tornozelos para trás e deixem as mãos repousando sobre o colo.

Sapatos, para ambos os sexos, apenas com sola de couro. Aparecer de tênis em uma aula da Madame era o mesmo que pedir para passar a noite de castigo, sentado.

As unhas também eram revisadas quase todas as aulas. Não precisavam estar feitas, mas tinham que estar limpas e cortadas. Unhas roídas ganhavam um severo ar de reprovação.

E, com tantas regras, sobrava tempo para dançar? E como! Saíamos de lá, invariavelmente, um ou dois quilos mais leves, tamanha era a intensidade do exercício.

As turmas eram divididas em três, cada qual com o seu dia na semana. Os principiantes – ou “abacaxis”, como a Madame costumava chamar carinhosamente – iam na segunda-feira. Os intermediários, iam na terça e os “profissionais”, na quarta. A parte boa era que, conforme os alunos iam evoluindo, eram convidados a mudar de dia e a continuar freqüentando os dias dos iniciantes (e intermediários) para ajudar os alunos mais novos. Assim, lá pelas tantas, podíamos dançar três vezes por semana. E um pouco mais além, turmas formadas – com grupos, casais e panelinhas – dançávamos os três dias de aula e mais nas quintas-feiras, numa extinta casa de dança e aos sábados, geralmente numa gafieira.

Nas aulas, tudo muito certinho. A um sinal da Madame, cada “cavalheiro” devia partir do seu lado do salão e tirar uma “dama” para dançar. Tudo comme il fault, com direito a cortesia, mão estendida e tudo. Um show. Para uma menina de dezesseis anos, era o que de mais próximo havia de uma lady, prestes a dançar um minueto em um castelo renascentista.

No salão com mão de direção, os ritmos se sucediam deliciosamente. Fox, samba, valsa (a lenta e a vienense), rumba, rock’n’roll, polca, tango, bolero, gafieira, hully-gully, cha-cha-cha... um a um os passos de cada ritmo iam sendo desvendados diante dos nossos olhos e pés, progressivamente mais hábeis e firmemente guiados pela Madame.

Nas primeiras aulas, era comum a vontade de desistir, confrontados cruamente com a certeza de que havíamos nascido com dois pés esquerdos. Mas depois alguns meses, éramos tão bons que fechávamos pistas, dançávamos de graça nos lugares que freqüentávamos, ajudávamos a treinar debutantes de clubes e éramos muitas vezes abordados por estranhos, perguntando como, onde e porquê.

Bons tempos... Tempos leves. Pisando em nuvens e pensando em nada. Dançando, apenas.

9 comentários:

UrbAnna disse...

Eu ADORO dançar!
Desisti das aulas de dança de salão porque o meu marido não conseguia acompanhar nem o alongamento, quem dirá os passos de dança!!!
Mas ainda vou voltar para as aulas, assim que descolar um caminhão de paciência para poder dançar com ele sem discutir!
Beijo

Cláudia disse...

Que delícia! Que inveja!
Adoro dançar mas sou um cabo de vassoura.
Ou melhor, cabo de vassoura é magro né? Tõ mais pra tronco de jacarandá.
beijo

Rodolfo Barreto disse...

Essa parte que ela faz até uma geladeira dançar é pura verdade. Eu já tive uma lavadora de roupas que teve aulas com ela e vivia ziguezagueando pela área lá de casa.

Juliana Mattoni disse...

Gente, que delícia..Vc foi contando e eu fazendo um filme na cabeça.
Vontade de voltar ao meu sapateado.

Ana Téjo disse...

Anna,
Também adoro e também tentei ensinar o meu ex. Em vão. Agora, estou pensando em empreender uma nova campanha para persuadir o sr. Ana Téjo. Será?

Clau,
Eu era um cabo de vassoura. Aliás, comecei a dançar justamente por causa disso.

Ana Téjo disse...

Rodis,
O estilo máquina de lavar roupas está mais para as aulas do Carlinhos de Jesus.

Juliana,
Já coisas que a gente não devia parar de fazer nunca.

MH disse...

Ai que delícia!!
Não tenho a menor coordenação motora, mas morro de vontade de aprender...

Unknown disse...

Eu acho lindo saber dançar assim, mas sou um erro genético quando a história é ritmo. Culpo minha professora de sapateado da infancia, que expremia meu rosto e batia nos meus pés quando eu fazia algo errado... não foi das aprendizagens mais prazerosas.

Ana Téjo disse...

MH,
Todo mundo aprende. Conheci uma vez uma pessoa com dois pés esquerdos. Aprendeu que foi uma beleza.

Anninha,
- Primeiro passo: vamos pegar essa sua professora e dar um corretivo nela.
- Segundo: lembra quando eu falei que as pessoas aprendem a dançar pelos mais variados motivos, nem sempre nobres? Pois é. EU era um erro genético, minha cara. Se EU aprendi, até uma Brastemp Duplex aprende.