segunda-feira, 27 de agosto de 2007

A escolha

Ele tinha três irmãos, ela, quatro. Casaram-se já maduros, com planos ambiciosos de ter pelo menos quatro filhos.

_ Quatro?! _ comentavam os amigos, espantados. _ É preciso muita coragem para ter quatro filhos hoje em dia!
_ Que disposição, hein, Paulão?!
_ Dá-lhe, Paulão! Já estão treinando muito?

A idéia era reproduzir em casa a alegria e o caos a que haviam se habituado. Para isso, lançariam mão das economias reunidas ao longo de duas carreiras consolidadas e optariam por uma vida com menos luxos.

Não tinham dúvidas de que seriam felizes. Mas o tempo começou a passar. Um, dois, quatro anos. Ela, cada vez mais próxima dos quarenta. Depois de cinco anos, os amigos começaram a perguntar.

_ É estranho _ diziam _ Vocês dois, com famílias tão grandes, sem querer ter filhos...

Eles sorriam meio sem jeito e balbuciavam alguma coisa sobre estarem aproveitando a vida.

Não faltava paixão, não faltava interesse, não faltava sexo. Em segredo, foram buscar um especialista. Depois de dezenas de horas de perguntas e de algo como duas dúzias de exames, veio o veredicto: o nome técnico era “reprodução assistida” e havia várias formas de fazê-lo. Depois de esgotados os métodos mais convencionais que tiravam toda a espontaneidade do sexo, partiram para a fase dois, que consistia numa série de injeções para estimular ovulações múltiplas. Os médicos coletariam os óvulos, fariam a fertilização in vitro e reimplantariam os embriões. Foi nessa fase que começaram a conhecer a parte capitalista da coisa: uma fertilização por doze. Três por trinta. Trinta mil. Dólares.

_ Mas e se eu engravidar na primeira?
_ Ah, aí vai ser ótimo, não vai?
_ Mas aí vocês devolvem o dinheiro?
_ Não, senhora.
_ Então, a gente vai pagar de uma em uma.
_ Vocês é que sabem.
_ Mas quais são as chances de eu engravidar na primeira?
_ Entre trinta e quarenta por cento.
_ Só???
_ Só.
_ E com três?
_ Setenta por cento.

Venderam um dos carros e um terreno no interior e se entregaram à empreitada. Compraram o pacote de três tentativas. Ele detestava o dia da coleta de sêmen. Ela não suportava o dia da coleta de óvulos.

Na primeira vez, implantaram três embriões. Tiveram “problemas de fixação”, conforme disse o médico. Frustrados, esperaram dois meses e fizeram a segunda tentativa. Mais três embriões. Dessa vez, um deles chegou a “vingar”, mas durou apenas cinco semanas. Depois do período de luto pela perda do filho, resolveram esperar um tempo. Ela, já com quase quarenta e dois anos, sentia-se derrotada. Tinham mais uma tentativa. E se não desse certo? E se não fosse “a vontade de Deus”? Mas justo eles, que queriam tanto? E que se queriam? E que podiam criar? E dedicar tempo e amor? Justo eles que tinham famílias tão grandes? Talvez Deus já tivesse dado seu sinal, disse uma amiga. Se Ele quisesse que tivessem filhos, teria permitido que as coisas acontecessem naturalmente. Magoada, ela cortou relações com a amiga e partiu para a terceira tentativa.

O médico sugeriu que daquela vez implantassem cinco embriões, para “maximizar as chances”.

_ Mas eu vou agüentar gestar quíntuplos? _ perguntou, insegura.
_ Você vai ter que ficar quase toda a gestação na cama.
_ Tudo bem. Eu fico. Mas cabem cinco bebês na minha barriga?

O médico apenas sorriu. Fizeram. Ela foi da clínica diretamente para a cama de casa. Três semanas depois, na ultrassonografia, viram que quatro embriões continuavam lá. Eles não cabiam em si. Iam ser pais, finalmente.

No começo da décima semana, o médico os chamou para uma conversa.

_ Vamos ter que fazer uma redução seletiva.
_ O que é isso?
_ Vamos ter que tirar um dos embriões, para aumentar a chance dos outros.
_ O quê???!!!
_ Se mantiver os quatro, você pode acabar perdendo todos.
_ Mas eu perguntei antes, eu perguntei, eu...
_ São três meninos e uma menina. Sugiro retirar um dos meninos. O menor deles.
_ Um menino? O menor?! _ E se alguém uma dia decidir que você não merece viver porque é menor que os outros? Ela própria não chegava a um metro e sessenta...

Saiu do consultório chorando muito e foi para casa com a promessa de pensar. Conversou por dias com o marido e a barriga, brigaram, fizeram as pazes, tornaram a brigar, ela pediu perdão aos filhos, ponderou as chances e voltou ao consultório dizendo que faria maldita redução.

Entrou no hospital na manhã de terça-feira. Com o procedimento invasivo para tirar um, perdeu os quatro. Nunca mais tentou. Hoje, aos cinqüenta e dois anos, dia do décimo aniversário da perda dos filhos, embala suas bonecas na clínica de onde nunca mais saiu. O ex-marido vai vê-la todo fim de semana, com os três filhos que teve no segundo casamento.

24 comentários:

Renata Marques disse...

Que história triste...
Espero que não seja real. Deve ser muito difícil essa situação. Muita dor! Deus me livre.

Bjos.

Ana disse...

:O
caraca, que final cruel!

Cláudia disse...

Muito triste.
Mais triste ainda é saber que tantas mulheres passam por situação parecida, muitas vezes cercadas de incompreensão por parte da família e dos amigos, que acham que é uma obsessão, quando na verdade é só uma vontade grande de ser mãe.
beijo

Anônimo disse...

Eu passei por isto...

:(

Juliana Mattoni disse...

Triste toda a vida. Escolher é muito difícil sempre, até porque não dá pra rebobinar a fita e ver qual final a outra opção lhe reservava.

UrbAnna disse...

Putz... meu desejo de ser mãe é tanto(não agora, mas daqui uns dois ou três anos)e tão forte que eu morro de medo de passar por uma situação similar...
Mas nada de ficar encucando com isso... Se não puder tê-los da minha barriga eu adoto!
Triste estória (principalmente porque existem muitas HIstórias iguais).
Beijo

Angela disse...

q tristeza......

Ana Téjo disse...

Re,
Dor demais.

Ana,
Também acho.

Ana Téjo disse...

Clau,
Concordo plenamente.

Cassio,
Jura mesmo? Nunca imaginei. Você tem minha solidariedade.

Ana Téjo disse...

Juliana,
Optar entre filhos é uma das coisas mais cruéis a que um ser humano pode ser submetido. Mesmo quando são filhos que ainda nem nasceram.

Anna,
Você nem imagina quantas.

Ana Téjo disse...

Angela,
Não é?

Rodolfo Barreto disse...

Sensacional. Muito bom mesmo.
Se tivesse que separar alguns contos de outros, este seria um deles. E um dos maiores ;)

mc disse...

Que horror!!! to mal com essa história. Espero que seja produto da sua mente fértil, pq isso realmente não é justo.

Lala disse...

Ai, eu não podia ter lido isso :-(

Que coisa mais triste.

Beijo

Rubi disse...

Que tristeza Ana. Fiquei deprimida!!!

Ana Téjo disse...

Rods,
Puxa... obrigada.

MC,
A vida não é justa, querida.

Ana Téjo disse...

Lala,
Muito triste.

Rubina,
Espero que tenha passado.

MEHC disse...

Ai, Ana, que história mais triste!Dá uma dor no coração.Ninguém devia passar por tal desgosto e sofrimento.
Bjo

Ana Téjo disse...

Emília,
Ninguém.

Aline disse...

Muito triste mesmo.
Por isso mesmo, muito bem escrito.

Bjs.

Ana Téjo disse...

Aline,
Obrigada.

Lita disse...

Chorei...

Ana Téjo disse...

Lita,
É triste mesmo.

Karina AT disse...

Nossa!