Hoje, eu pretendia atender ao convite do meu amigo Gastón e escrever um post sobre Um Dia Perfeito.
São Paulo amanheceu soterrada por uma greve do metrô. Se o trânsito em dias normais já é inviável, em dias de greve e ausência de rodízio, fica impossível. Cheguei ao trabalho pela manhã e saí depois de quinze minutos para uma reunião. O percurso, que normalmente não leva nem vinte minutos, levou quase uma hora. Ida, volta, almoço, trabalho, prazos comendo pelo pé. Lá pelas oito da noite, concluo que é hora de ir para casa antes que o cérebro fique (totalmente) paralisado. Contrariando os conselhos dos colegas, me despeço e saio.
Paulista é assim. Prefere percorrer o dobro da distância a ter que ficar parado. Munida desse espírito, pego uma quebrada aqui, outra ali, uma pra esquerda, outra pra direita, dando a volta, até que chego ao Largo de Pinheiros, uma área comercial popular que tem, dentre outras coisas, um mercado e um terminal de ônibus. Quem conhece, faz o possível para passar longe.
O rádio anuncia: “oito e vinte e seis da noite. Duzentos e trinta e quatro quilômetros de congestionamento em São Paulo.”
Meu carro é o terceiro da fila do meio, antes do farol. Em dias assim, a existência do farol é meramente psicológica porque não se progride um palmo, independentemente do que indique a cor. Enfim, havia seis carros na minha frente, dois ao meu lado e oitocentos e cinqüenta mil atrás de mim.
Da esquerda, surge um bando a pé. Uns doze ou quinze, todos sem camisa. Em grupos de três ou quatro, assaltam os carros da primeira fila. Todos. O farol abre. Nada muda. Desligo o rádio, confiro a trava da porta e agarro a direção. Segunda onda: mais grupos de três ou quatro nos carros da segunda fila. Na minha frente, um Volvo preto. O grupo grita e sacode a carroceria. Um deles, armado com um pedaço de pau, começa a bater no vidro do carro. Bate uma, duas, três, quatro vezes até que o vidro do Volvo estoura, fazendo barulho de demonstração de Dolby Surround Sound em cinema. O dono do porrete recua. Um colega de trabalho mete o pé no vidro, que cede. Ele mesmo se encarrega de arrancar o motorista pela janela. Estou a menos de três metros da cena. O dono do carro tem cinqüenta ou sessenta anos, é grisalho, levemente robusto e veste terno escuro, camisa clara e gravata vermelha. É extraído como um dente. Antes que consiga tocar o chão, o dono do porrete investe contra ele com o auxílio de outros, igualmente armados. Alguém já ouviu o barulho de um pedaço de pau batendo em carne humana? Ao vivo, digo. Dependendo de onde os golpes atingem, o ruído é mais abafado, como se fosse num sofá, ou mais seco, como se fosse numa mesa de bilhar. Do chão, o motorista grita, sangra e tenta proteger a cabeça com as mãos mas é golpeado várias vezes. Cai de vez e ali fica.
Situação: à minha frente, o Volvo vazio. À direita, o quinto carro assaltado. À esquerda, o motorista caído e diante disso tudo, os mesmos três carros que haviam sido assaltados na rodada anterior, ainda incapazes se mover.
Num átimo, o carro da esquerda desvia do homem no chão e sobe na calçada. Avanço um pouco, dou ré, bato no Volto de leve e pego a calçada também. Não progredimos mais de cinco metros. Apenas o suficiente para ocupar o primeiro e segundo lugares da pista da esquerda. O farol abre e meu companheiro de calçada avança de qualquer jeito, fechando ainda mais o cruzamento. Colo nele. Ficamos pelo menos mais cinco minutos naquelas posições. No meu corpo, nada funciona. O coração, talvez, mas não saberia dizer ao certo.
Pelo retrovisor, vejo alguns integrantes da turma do porrete se dispersando. Numa brecha, fujo. Não importa para onde. Ligo pra casa e quase mato minha filha de susto. Desculpe, filha,. É que eu precisava ouvir alguma coisa boa. Caio na Faria Lima abarrotada e abro o vidro apenas para vomitar. Chego em casa vinte minutos depois, chorando convulsivamente e tremendo da cabeça aos pés.
Merda de greve, merda de trânsito, merda de violência e merda de vida que a gente leva para (tentar) sobreviver.
É, Gastón. O Dia Perfeito vai ter que ficar para outro dia.
quinta-feira, 2 de agosto de 2007
Perfeito, o cacete
Postado por
Ana Téjo
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23:20
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33 comentários:
Caraca Ana, fiquei até arrepiada lendo. Horrivel e lamentavel.
O pior é que a gente tem que aprender a lidar com isso. Esse mal estar coletivo.
Fica bem, bj
Ana, pelo amor de Deus, o que é isso? Estou perplexa, ferida e apavorada com seu relato. Que coisa mais revoltante! Que país é esse? Que merda de vida levamos, que perfeito é o dia em que não acontece nada do tipo!
Só consigo imaginar seu medo. Espero, sinceramente, que vc esteja bem e que, por um sopro se for preciso, Deus consiga tirar essas imagens da sua cabeça.
Abraços e carinhos,
Rê.
Sem palavras.
Fico sinceramente feliz por você estar bem (fisicamente).
Rezo pelo sujeito do Volvo.
Estou longe das pessoas que mais amo e essas histórias me fazem lembrar porque. Coisas assim dão uma tristeza tão grande que não dá nem para explicar. Como dizem aqui em Portugal: força.
Isso é um horror. Força.
fabi, desculpa mas a gente não tem q aprender a lidar com isso. Vc já pensou q o deputado q vc elegeu é tb responsável por isso? Pergunte diretamente a ele por que as coisas não estão melhores... não dá pra a classe média sofrer mais.
Poxa, Ana, tô arrasada só de ler.
Já é horrível o fato de saber que essa "desimportância" com o ser humano exista, e presenciar isso deve ser uma das coisas mais revoltantes e tristes.
Um forte abraço pra você. É virtual mas receba como se fosse de verdade.
Ana, que absurdo isso...
Estou chocada só por ler, imagino vc presenciando a cena. Que coisa horrível!
Não entendo como é que seres humanos podem fazer esse tipo de coisa com outro ser humano... Nessas horas eu perco totalmente a fé na nossa espécie!
Deus nos proteja!
Beijo
estou chocada!
assim que possível vou picar a mula desse país.
descobri que minha gastirte e fruto do ódio e indignação que sinto por essa pátria.
nenhum ser humano merece viver com medo.
espero que tenha se recuperado desse filme de terror.
bjo
Nossa, estou passada... saber que tudo isso pode acontecer (e acontece!) já é horrível, não posso nem imaginar VER a situação toda bem ali, na minha frente...
Anna,
estou chocada! Meu Deus do Céu!!!!!
Mas vc não ligou pra policia? Ninguem ali ligou pra policia???
Juro por Deus, juro, que numa hora dessas eu queria estar armada, pra matar um por um!!!!
(podem me xingar se quiserem. Queria mesmo, um por um!)
Espero que dias melhores se aproximem.
QUE ÓDIO!!! QUE GRANDE, IMENSO, REVOLTANTE ÓDIO!!!!
Que violência absurda, gratuita, que merda de país!
Ai querida, só Deus pra cuidar da gente... que bom que ele cuidou de você.
melhor seria que ninguém fosse trabalhar num dia desses.
culpa nossa, também, que saímos de casa e vamos pra nossa servidão voluntária.
Desculpe o egoísmo, mas lendo o que escreveu, fiquei aliviada por vc ter voltado pra casa inteira e fisicamente sã.
Polícia: nessas horas não aparece um único né?
beijo
O pior é a nossa impotência diante de tudo isso. O que será que temos que fazer? Será que devemos agir como o nosso pres. Lula e "entregar nossas vidas a Deus" quando saímos de casa para trabalhar?
Ele só esquece que o povo não votou em Deus, votou nele.
Nossa... que cena terrível, rezemos pelo senhor do Volvo e por todos nós e como já disse uma outra pessoa, nós somos obrigados a nos deslocarmos para não faltarmos em nossos serviços, é uma escravidão...
Boa sorte hoje a todos que vão voltar para suas casas, seja de carro ou de ônibus, que todos voltem em segurança e em paz.
Respira!!! Beijos
Nosssaa!!!Fiquei horrorizada com o que eu li...
Medo, indignação, mal estar..e todas essas coisas...
Meu Deus1!!!Que absurdo!!!
Ana, que bom que você esta bem...Mas fiquei aqui pensando e com certeza continuarei pensando no que deu...quem ajudou o motorista?Pq isso?Pra que tanta violência?
Vc chegou dessa forma em casa...Se fosse eu no seu lugar...nao teria chegado!
beijos Querida!!!
Como é que nenhum filho da puta dos carros à volta pegou uma chave de roda, um extintor, qualquer coisa, e encheu esses calhordas de porrada? Como é que não houve uma pequena revolução, uma revolta dos motoristas? Todo mundo ficou quieto e tentou escapar, só isso?Sei não, Aninha, essa cidade cheia de ar condicionado e manobristas nas portas dos restauantes da moda deixou as pessoas com sangue de barata, isso é que é. Não pode uma coisa dessas.
Entendi bem ou vc viu toda a cena e sua ÚNICA preocupação foi a de salvar a própria pele? Em nenhum momento, nem por um segundo, lhe ocorreu de discar 190?
Da um puta frio na barriga e uma vontade e ficar em casa, bem quieta, num canto esperando a vida passar.
anônimo, eu no lugar dela faria o mesmo: tentaria salvar a minha própria pele, por mais mesquinha que pode ser esta atitude.
Que merda!
Esse é um dos motivos que me movimenta a sair daqui! Muito bom o blog! Parabéns!
NOssa, Ana...
QUe coisa mais chata.
Graças a Deus, vc ficou bem. E espero que o Sr. do Volvo se recupere. REalmente, hoje em dia, não há nada a ser feito. Nâo se anda mais com segurança, não se tem mais nada...nem a saúde, pelo visto. Saúde física e psicológica.
Espero que vc se recupere bem deste acontecimento, Ana e tenho certeza que Deus te ilumina sempre...Beijão, querida
Revolução dos extintores, sim, funcionaria, desde que não empunhado por uma única mulher, uma vez que os machos da espécie estavam todos na mesma situação diante dos agressores e nada fizeram. Agora, ligar 190, anônimo, acorda, não estamos na Suíça, viu? A polícia não ia se materializar em meio ao engarrafamento nunquinha, embora uma situação de arrastão seja tão previsível que eles já deveriam estar lá há muuuuito tempo pra prevenir sem que ninguém precisasse chamar. Afinal, os marginais estão "sempre alerta".
Bjs, Ana Téjo, os sinos dobram por todos nós.
Rosana.
Ana,
eu e o meu marido ficamos chocados com tudo o que aconteceu.
Ontem, quando eu li o seu post não consegui deixar mensagem na hora. Fui direto pro banheiro, verdade. Essas ocorrências me deixam muito mal.
E a gente nem se conhece, né? Mas nem precisa quando se trata do outro, do que ainda existe de humano nesse mundo.
Espero que você esteja melhor (e que o senhor que foi agredido também, onde quer que ele esteja)
Beijo carinhoso
De que ia adiantar ligar para a polícia? Como eles iam chegar com o trânsito todo parado? E mesmo que conseguissem abrir caminho, quanto tempo isso ia levar? Só se fosse de tele-transporte...
Triste. Muito triste
Ana - um relato chocante, dramático, angustiante...
Mais do que sempre agradecer à Deus estarmos juntos, agradeço sobretudo você estar bem, sempre!!!
Me
E mais... que bom poder sempre ter a certeza de que depois de um dia destes, um dia perfeito se fez presente....
Amo você!
Me
Ana querida
Eu sinto muito, muito.
que merda.
Val
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