Aí, cá estava eu, reclamando da vida, da fatura do cartão, do cheque especial estourado, do percentual da inflação versus o salário dos últimos anos, da grana dos freelas às vezes demora a chegar, dos calotes, do presente que eu queria comprar pra mim e não vou poder, do carro que eu queria trocar, do mês que acaba muito depois do fim do salário... Aí, parei e tive uma crise de consciência pesadíssima. A gente reclama de barriga cheia, repleta. Eu aqui, na minha cadeira ergonômica, diante do meu monitor fininho de grife, ligada à minha banda larguíssima, perto da máquina de café expresso e reclamando?
Há um tempo - muito tempo, aliás. Estava na faculdade -, fiz um estudo sobre a ocupação urbana do Centro Velho de São Paulo; aquela parte da cidade para onde as pessoas acabam indo, vindas do Terminal Rodoviário do Tietê e, antes dele, de Sergipe, da Paraíba, da Bahia, do Ceará e sabe-se Deus de onde mais, cheias de esperanças e expectativas. Gente que vêm para voltar, meses ou anos depois, desiludida, destroçada, embrutecida e, o pior de tudo: certa de que "era feliz e não sabia" na simplicidade espartana de onde veio. Não sou contra o êxodo. Se fosse, nordestina que sou, não estaria nem aqui! Mas voltando ao Centro Velho, fiquei besta ao descobrir os tipos de acomodação oferecidos aos recém-chegados.
Era mais ou menos assim:
- Apartamento: é a acomodação "de luxo", para os retirantes bem nascidos, que estão "no topo da cadeia alimentar". Só que de apartamento, não tem nada. Trata-se apenas de um quarto com banheiro em uma casa de família, ou nem tanto. É a famosa "suíte" da classe média, só que lembrando muito mais o Quarto de Van Gogh em Arles, sem os quadros na parede, evidentemente.
- Quarto: um nível abaixo do apartamento, é o mesmo Quarto de Van Gogh em Arles, só que sem os quadros e sem banheiro. O banheiro é comunitário e fica no corredor.
- Vaga: é aqui que a coisa começa a ficar curiosa. A "vaga" consiste em um quarto sem banheiro, com várias camas (geralmente beliches), em que diversas pessoas partilham o mesmo espaço. Para guardar as coisas, um único guarda-roupas de duas portas, geralmente dominado por quem está no lugar há mais tempo, baús em casos eventuais ou a própria mala mesmo, se você tiver a sorte de estar na cama de baixo. A "vaga" tem duas subdivisões:
- Vaga fria: é a melhor. Na vaga fria, a cama é de uma pessoa só. É só chegar, deitar e dormir.
- Vaga quente: trata-se de uma "otimização" da vaga e consiste na ocupação alternada de um mesmo leito, por duas ou mais pessoas. Assim: você é pedreiro e eu sou vigia noturno. Você dorme na vaga das dez da noite às cinco da manhã e eu durmo das seis da manhã às duas da tarde. Se a gente der sorte de arrumar alguém que queira dormir das três da tarde às nove da noite, melhor ainda porque o aluguel fica mais barato. A vaga quente tem esse nome por razões óbvias. Com o uso otimizadíssimo do espaço, os lençóis nunca chegam a esfriar. Prático, né? Tudo no maior respeito.
E é muito melhor que os abrigos da prefeitura, pra quando o cabra já está próximo do fundo do poço. Nos abrigos, os colchões ficam no chão, sem lençol mas com piolhos e pulgas e a ocupação é desordenada, ou melhor, caótica mesmo. Como é um serviço gratuito, quem chegar primeiro, deita. Se estiver frio, então, pior ainda. Os abusos sexuais e roubos não são raros, na calada da noite.
Mas ainda é melhor que dormir na rua...
E eu, preocupada com a fatura do cartão! Francamente...
Ah, o texto, como a vaga, é requentado.
13 comentários:
É, Ana.
É inevitável que passemos algum tempo olhando apenas para o nosso mundo. Mas quando olhamos a complexidades do mundo ao redor, tem hora que dá até vergonha, né!?
De qq forma, todos têm seus problemas...............
Beijos, querida! E boa semana, vivi
Tem toda razão, Ana.
Eu parei de reclamar há algum tempo... Minha vida pode não ser perfeita, mas, sério, não reclamo mais dela. Vejo tanta gente em situações realmente difíceis que não me dou mais o direito de reclamar.
A eterna insatisfação é útil, pois nos permite a melhoria contínua, porém, de nada adianta ficarmos reclamando ou achando que 'estamos na pior', pois existem milhões de pessoas realmente "na pior".
Querer melhorar/evoluir sim, mas com a consciência de que o que já temos é muito mais do que muita gente vai ter em uma vida inteira, com a consciência de que o que muita gente sonha resume-se em ter a certeza de possuir um prato de comida e um leito quente para onde voltar no final de cada dia!
Beijo
Ana - sua vaga tá sempre, aqui!!! ;-)
Me
Há apenas dois dias estive numa cerimônia de entrega de casas populares (interior de São Paulo). Casas até toscas, sem reboque, minúsculas, ruas de terra, bairro afastado.
Mas foram 235 famílias.
Famílias que não tinham idéia do que é um teto firme, um título de propriedade, um lugar seco, um lar quentinho para se morar. Crianças, inúmeras crianças, que nasceram no "assentamento" e agora estão assentadas num lugar de verdade.
Por mais tosco que seja.
É, Ana. De fato nós nos perdemos tanto no nosso dia-a-dia que acabamos - também - perdendo a noção dessas coisas...
Você tem toda razão. A gente reclama por muito pouco. Tem horas que eu me sinto até constrangida por ter reclamado.
Mas somos humanos, não somos? Por isso, não fique também se torturando tanto assim.
beijo
Bacana o relato do Adauto e as manifestações de solidariedade dos demais.
É Ana - seu blog pondo todos nós para pensar e nos darmos conta do tanto que temos, sob todos os aspectos.
Vivi,
Dá, sim.
Todos têm problemas. Mas alguns são maiores que os outros, né?
Beijso e ótima semana também. Com ou sem chuva.
Anna,
É isso.
Como dizia uma pessoa de quem eu gosto muito, é a insatisfação que nos move. Ele dizia ainda que "o equilíbrio está no cemitério". E não é que está? A gente só fica indo atrás, ininterruptamente, porque sempre acha que falta uma coisinha...
You,
Pena que dá tempo dela esfriar!
Adauto,
Para eles, foi um salto de qualidade.
Deve ter sido uma experiência muito rica para você.
Agora eles têm endereço(!). Já pensou?
Clau,
Eu não me torturo (muito). Sei bem que viver é reclamar, é buscar, é insistir.
LED,
Também achei. Imagina a cara de felicidades das mulheres? Das crianças?
É. A gente tem muito mesmo. Sob todos os aspectos.
Vc é do nordeste?
Olha... me fez pensar bem, pois estava com a mesma preocupação que a sua, meu cartão... óh! céus!
É reclamamos de barriga cheia.... bjs Re
Enquanto existir a África a gente tem que ficar feliz? Não concordo. A indignação em um nível aceitável é até bom para não gerar aquele estado de inércia e acomodação. O que eu costumo fazer é me policiar para não dar tanto peso a problemas pequenos.
Re,
Sou. De Recife.
Paguei meu cartão ontem. Ai!
Vc é de Recife? Morei lá 3 anos.... amo aquela terra.... Mas... voltei pra SP, que amo tb... que saudades tenho de lá.... bjs Re
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