Havia crescido daquele jeito, de forma que não sofria com os dilemas morais da classe média cristã. Sexo fazia parte da sua vida desde que o padrasto, ainda antes dela ficar moça, decidira tomar-lhe o corpo sem pedir licença. Para que outro não lhe faça mal, dissera. Depois dele, outros tantos haviam agido da mesma forma. Ela nunca sentira nada, além de um certo desconforto por causa do peso
Era tão menina, que nem relacionou aquelas invasões à barriga, cada vez mais redonda. Não sabia quem era o pai e nem se interessava. Que diferença faria? Mas o fato foi que, com o passar dos meses, aquele ventre, subitamente vivo, passou a lhe fazer companhia. De um jeito que não entendia direito, gostava de sentir as bolhas flutuando dentro dela.
O parto foi na rua mesmo, de dia mesmo, com a ajuda de alguém que estava passando. Lá pelas tantas, acha que perdeu os sentidos, porque acordou em um lugar muito branco, cheio de gente que a olhava de cima para baixo. Disseram que o menino estava bem. No dia seguinte, avisaram que podia ir embora e que era preciso registrá-lo. Registrar? É. Para ele ser gente.
Aquilo a sensibilizou. “Gente”. Algo que ela própria nunca havia sido. Saiu dali direto para o cartório. Foi perguntando pela rua até encontrar. Um pouco depois, menino nos braços, o tal escrivão quis saber o nome. O meu? Não; o do menino. Ah, João. João de quê? Hein...? João de quê? De onde veio o menino? Veio de mim. Mas como ele apareceu aí? Ah, disse ela, olhos subitamente iluminados, acho que foram os anjos.
Registrou-se João Aparecido dos Anjos. E assim ficou.
22 comentários:
que lindo! triste, poético... e real.
Triste :(
Coitada dela, do pai e do filho.
Ana,
Devia ter publicado na segunda...
Tão triste, ao mesmo lindo...
Lindo pela vida de João ...dos Anjos.
Mas triste pelo modo que aconteceu.
Bjos
Permita-me um pouco de "rasgação de seda"...
Seu estilo literário é único. É por isso que sempre passo por aqui, e leio absolutamente tudo, pois sei que essa leitura alguma reflexão me trará - seja do lado cômico, humano, culinário, paternal, ou qualquer outro. Não canso de me surpreender.
Aiiii...Me ajuda!...Tô confusa!
Belissimo! Real! Emotivo! Vibrante!
Mas minha cabeça estrtagou tudo.
Pensou:
Lamenávelmente daí vem a bolsa esmola! Sniff
Perdoe-me....
Denso...muito denso...triste.
Eu já pensei diferente do "anônimo": pensei que dali surgiria uma grande historia, e que João se tornaria um grande homem!
Reflexivo...Sem palavras....
Intenso, entre belo e triste.
Quantas mães não surgem da mesma forma que essa... Quantos "joãos" não nascem assim.
Obrigada pela reflexão a mim proporcionada.
Bom final de semana, Ana.
Beijo
*Anna*
Muito triste...
Real???
Se esta não for....tem outras que podem ser relacionadas a essa, uma vez q acontece isso "normalmente"...
Meu Deus...e eu aqui preocupada com coisas...
beijos
Mary
O incomum, o horripilante é ver que mesmo aqui nesta linha de reflexão ficamos inertes, "achando" que isto é O normal, O natural e que os responsaveis (que podem ser nossos vizinhos e parentes) ficarão impunes e que a vida é assim mesmo e que seguiremos nossos caminhos...
Lamnetável,
Silvia
MH,
Obrigada, querida.
Cassio,
Por que? Na segunda tem mais!
Esfinge,
Imagina quantos desses não tem por aí...
Adauto,
Meniiiino, obrigada. Uma coisa dessas, lida assim, numa segunda-feira logo pela manhã, faz com que eu me sinta a Rainha da Web Cocada. Obrigada mesmo. Vou continuar treinando para melhorar sempre.
Claudia,
Ajudo. Qual é a confusão, querida?
Anônimo,
Tá perdoado. Preciso confessar que esmola, eu não dou. A não ser para um velhinho que fica numa esquina da Cidade Jardim e que é a cara do Ibrahim Ferrer, do Buena Vista Social Club. Mas aí, não dou por ele. Dou pelo Ibrahim, que Deus o tenha, cantando alegremente ao seu lado.
Acho também que as Bolsas Família, Escola e outras afins têm origens e consequências muito mais complexas, mas aí, vamos descambar para a sociologia não vai caber numa caixa de comments, né?
Ana,
As chances são pequenas, as variáveis não chegam a ser favoráveis, mas quem sabe, né?
Lana,
Obrigada.
*Anna*,
De fato, tem disso aos montes por aí. A gente é que procura não ver.
Beijos, queri.
Mary,
Claro que é real. Mais real do que você imagina...
Silvia,
Sem dúvida, lamentável.
Que lindo, Ana...
Seus textos sempre são um misto de emoções...por isso que amo vir aqui.
beijos,
Este é um texto que poderia ter qualquer sotaque brasileiro. É triste não só pela história, mas por sabermos que as linhas estão ainda bem longe da ficção.
Eu li com sotaque nordestino de pé no chão. Em matéria de sofrimento, esse povo é phd mesmo sendo analfabeto.
Do sofrimento nascem boas histórias e é uma pena que os sofredores não possam lê-las depois.
Pena? Não. A ignorância tem o poder de amenizar e colocar panos quentes nesses pés descalços.
Ana, que texto fantástico. Inspiração de sobre numa segunda de manhã. Ainda que com seu bocado de tristeza.
Vivi,
Obrigada, querida. Venha sempre. Você é habituée e muitíssimo bem vinda.
Rods,
Mudam os sotaques, não mudam as histórias.
Concordo com você: a ignorância é mesmo um bálsamo. Talvez por isso as pessoas se empenhem tão pouco em combatê-la, né?
Gastón,
Obrigada, mas a inspiração foi de sexta, no fim do dia, meio roubada dos últimos minutos de trabalho...
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